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TENDÊNCIAS/DEBATES
Para crescer, o Brasil precisa mudar a legislação ambiental?
NÃO
Da ingenuidade à covardia
JOSÉ ELI DA VEIGA
CLARO QUE certos investimentos seriam desinibidos pela relaxação de restrições à possibilidade de depredar recursos naturais
e de poluir. Tanto quanto outros o seriam pela relaxação de restrições à
possibilidade de explorar crianças ou
o trabalho forçado. Ou, ainda, pela relaxação de tantas outras instituições
criadas no século passado para proteger as pessoas e a natureza da voracidade desse gênero de investidores.
Como a aceleração do crescimento
requer elevação da taxa de investimento de 20% para 26%, é óbvia a
vantagem imediata de retrocessos sociais que removam travas impostas à
apropriação "a ferro e a fogo" dos biomas nacionais.
Não se trata de saber se a proteção
legal do meio ambiente é ou não entrave ao crescimento. Afinal, o sindicato que o presidente liderou no início dos anos 1980 também o era -e é.
Sob prisma tão bitolado, só se pode
mesmo enxergar espetáculo de crescimento em um país dotado de amplos mercados consumidores e que
não ligue nem sequer para a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Muito menos para uma Constituição
como a de 1988. Aí está a China, onde
nem existe efetivo Poder Judiciário.
Visão menos ingênua da questão
supõe entendimento dos dois padrões essenciais de crescimento econômico. O que reinou quase absoluto
por mais de dez mil anos foi chamado
de "extensivo" por historiadores pois
espalhava os acréscimos populacionais por novas áreas geográficas, enquanto o produto aumentava no mesmo compasso. Em raras ocasiões e em
poucos lugares, algumas sociedades
elevaram a renda per capita mediante
o aumento da produtividade total dos
fatores (recursos naturais, força de
trabalho e capital). Mas foram proezas passageiras, que não tardaram a
decair ou colapsar. Esses surtos de
crescimento "intensivo" compõem a
"história das grandes civilizações".
Essa forma intensiva de crescimento acabou por se tornar recorrente.
Isso só foi possível porque o casamento da ciência com a tecnologia multiplicou de forma exponencial a capacidade de inovação das sociedades.
Enquanto no crescimento antigo
predominava a devora de recursos
naturais pela força física do trabalho
humano, o alicerce do crescimento
moderno passou cada vez mais a depender do uso inteligente das inovações que tornam o trabalho mais decente e qualificado, além de conservar os ecossistemas.
Por dez milênios predominou o tutano sobre o neurônio, mas isso vem
se invertendo com rapidez nos últimos 150 anos. A ponto de nada poder
ser mais estranho ao padrão moderno
do que a ânsia de turbinar o PIB pela
depredação do patrimônio natural.
Por isso, em vez de exigir recuo da
legislação ambiental, o crescimento
moderno se apóia na capacidade de
inovação da sociedade, que resulta de
forte interação entre a ciência e a tecnologia (C&T). O Brasil não voltará a
crescer bastante, com constância e
qualidade, enquanto não atribuir a
seu sistema de C&T um valor ao menos equivalente ao que dá ao futebol.
Simples miragem, claro, para uma
sociedade que se faz governar por
uma coalizão incapaz de desonerar a
carga tributária com contenção das
despesas correntes do setor público,
incapaz de fazer reformas imprescindíveis (como a da Previdência), incapaz de melhorar a eficiência do sistema judiciário, de rever a CLT etc.
Em tais circunstâncias, não passa
de covardia a propensão para escolher índios, quilombolas e ambientalistas como bodes expiatórios.
A sociedade brasileira está diante
de troca intertemporal. É preciso que
domine anseios ilusórios por imediatos saltos triplos do PIB para que seus
filhos, netos e bisnetos tenham chance de abrir caminho ao desenvolvimento sustentável.
Por isso, um estadista não cederia a
pressões dos arautos de obsoleto padrão de crescimento. Ao contrário,
adotaria uma estratégia focada em
decisivos investimentos públicos no
sistema de C&T. Assim, estimularia
os melhores investidores privados,
em vez de promover os jurássicos que
querem fazer da Amazônia e do que
resta do cerrado exatamente aquilo
que seus pais, avós e bisavós fizeram
da mata atlântica e da caatinga.
JOSÉ ELI DA VEIGA, 58, é professor titular e coordenador
do Núcleo de Economia Socioambiental da USP e autor de,
entre outros livros, "Meio Ambiente e Desenvolvimento".
www.econ.fea.usp.br/zeeli
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