São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 2003

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JOSÉ SARNEY

Desordem na ordem

O Brasil tirou férias do seu vício de perda da auto-estima -o que é muito bom. Todos estamos confiantes. Há esperanças no ar. O presidente Lula é curiosidade no mundo inteiro e tornou-se paradigma do poder criativo da liberdade de oportunidades, da ascensão social e de novos horizontes ideológicos, não marcados pela visão binária neoliberalismo versus socialismo.
O mesmo não acontece com a situação internacional, que percorre estrada inversa. Expectativas de esperanças podem ser contidas pela desestabilização da ordem mundial, marcada por códigos de convivência, agora num caminho de volta à lei da selva ou da natureza, como pensava Hobbes ao justificar a necessidade do Estado. Dois fatos concorrem para isso: 1) a substituição do sistema de potências pela hegemonia de uma só superpotência; 2) o surgimento do terrorismo como fato desagregador dessa ordem, transformando-a em desordem.
Em termos práticos, há três questões agudas no tabuleiro: o Iraque e a Coréia, globais; a Venezuela, regional. A gravidade da questão da Palestina transcende a conjuntura: ela tem raízes no passado longínquo, razões históricas, religiosas, territoriais e convites à tese do choque de civilizações.
Vamos ao Iraque. Os americanos estão decididos a invadi-lo por questões que dizem respeito a eles: petróleo, indústria de armas, o problema pessoal de Bush filho e o fracasso de Bush pai com a Guerra do Golfo inacabada. Não são motivos de sobrevivência da humanidade, perigo de destruição da Terra e outros de ordem internacional. Os pretextos, por mais que os repitam, não conseguem convencer ninguém. Todos sabem que o Iraque não ameaça nada. Há dez anos está sujeito a sanções econômicas e vigilância permanente, sem prova de envolvimento nos atentados terroristas mundiais. Isso não significa que não seja uma ditadura brutal, com um ditador cruel, uma nação submetida a um sistema de opressão e de violação dos direitos humanos permanente. O Iraque -recordemos- invadiu o Irã e o Kuait. Saddam é um troglodita político. Por isso foi condenado e paga um preço. Mas não é essa a motivação da invasão americana. São motivos internos. Aceitar a guerra por exclusiva vontade da política americana é um retrocesso perigoso na ordem internacional, de consequências catastróficas.
Problema diferente, mais grave, é o da Coréia do Norte. Contra a expansão de armas nucleares não podemos ter contemplação. Essas sim ameaçam o gênero humano. A Coréia tem de ser contida. Mas existe a China, sua aliada, potência nuclear, e aí os americanos sentem que a coisa é mais séria, que têm de buscar a via diplomática e não a militar. Mas não podemos permitir a expansão de armas nucleares. Devemos é bani-las.
Resta a Venezuela. Chávez é um presidente legítimo. Mas sua legitimidade democrática, com a mídia em tempo real querendo substituir a democracia representativa, vive um quadro de conflitos. A verdade é que a Venezuela está desestabilizada e não se sabe o que vai acontecer. Pior ainda, o fogo é na nossa fronteira.
As bruxas estão soltas e, queiramos ou não, o Brasil tem de lidar com as consequências de um mundo em contorção.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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