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São Paulo, segunda-feira, 10 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O que mudou

LUIZ WERNECK VIANNA


Nossas instituições surgem agora como confiáveis palcos de operação das mudanças decididas por toda a sociedade

Após mais de um mês de governo, já é hora de saber alguma coisa dele. Primeiro, é o oposto do que disse que seria no curso da campanha. Nela, como não tivemos tempo de esquecer, o candidato José Serra foi caracterizado, apesar de seus veementes protestos, como o representante da continuidade do governo que se despedia, enquanto a candidatura Lula, coerente com anos de cerrada oposição às teses e as práticas do governo do PSDB e da ampla coalizão que o sustentava, firmava-se na pregação da descontinuidade, denunciando a submissão da política vigente aos interesses do capital financeiro e o seu caráter antinacional e antipopular.
Daí a constatação surpreendente, tão logo foram conhecidas as primeiras tomadas de posição do governo Lula e tornou-se patente a reversão do quadro da campanha eleitoral, de que a agenda forte da coalizão governista anterior, principalmente nas questões sistêmicas, vale dizer macroeconômicas, está sendo inteiramente preservada. Não faltou quem sugerisse que o governo Fernando Henrique Cardoso se fazia projetar no de Lula, a quem caberia o arremate do seu projeto de reformas.
A sensação foi, então, de desalento, e mesmo uma boa parte dos otimistas se sentiu obrigada a concordar com os nossos céticos: mais uma vez, nada teria mudado. Entretanto, com o passar dos dias, apesar da evidência solar da continuidade entre os dois governos no principal, isto é, em matéria sistêmica, a idéia que se impõe, em meio à aparência da conservação, é a de que tudo mudou.
Mudou o que e quanto, a ponto de desqualificar a continuação do que era entendido como o principal? Mudou a República, e mudaram seus personagens, com a multidão de homens comuns chegando ao espaço público, mobilizados pelo direito à participação eleitoral. A longa marcha da ralé dos quatro séculos, para usar a feliz expressão da professora Maria Sylvia de Carvalho Franco, o limbo sedimentado na nossa história, ausente dos seus movimentos de superfície, sempre igual a si mesmo, antes orientado pelos caminhos erráticos do "hinterland" de Serras Peladas e de todos os Eldorados, quando não seguindo líderes messiânicos como na Canudos de Conselheiro, chega, agora, à cidade.
O povo do exílio vivido no sertão do país cumpre a sua migração para o mundo dos direitos, onde, sem arrombar portas, se assenta e impõe sua presença de multidão já com algum treinamento obtido nestes 20 anos de democracia política, no sentido de traduzir seus recursos de cidadania em instrumentos de emancipação. Nesse sentido, essa nossa Jerusalém não é feita de sonhos com o reino de Deus nem traz consigo um projeto de direito novo -seu direito é o da Carta de 1988, o da cidade para onde acorre. A República, por sua vez, muda quando acolhe a multidão, convertendo em prática o que, até então, não passava de declarações abstratas de princípios.
O efeito desse encontro da cidade com a multidão de homens comuns, ao concluir o lento, mas sempre progressivo, processo de incorporação desses homens ao mundo dos direitos, é o de uma revolução silenciosa, que, sem rupturas fulminantes e sob a influência da atividade popular, institui a possibilidade de uma democratização continuada da sociedade brasileira. Decerto que esse resultado feliz não é filho de um "fiat", e sim de uma longa trajetória do processo de criação da civilização brasileira, cuja característica mais marcante tem sido a de admitir, no curso de muitas gerações e na mesma direção, mudanças orientadas para uma crescente incorporação dos homens comuns, de que são exemplos a Revolução de 1930 e a institucionalização da Previdência Social para os trabalhadores do campo, empreendida sob o regime militar.
Narrativas clássicas sobre o Brasil, como as de Joaquim Nabuco, Euclydes da Cunha, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, com base em uma análise valorizadora da nossa história, contemplaram a possibilidade, agora diante de nós, de a sociedade brasileira encontrar o seu caminho democrático sem se afastar das suas balizas de fundação. Porque essa revolução silenciosa que aí está é rebento ilustre da marcha do processo civilizatório brasileiro. É contínua a ele, e não a sua refutação.
Nesse sentido, tudo mudou, pois nossas instituições surgem agora como confiáveis lugares de operação das mudanças que a sociedade decidir empreender. Em um passe de mágica, o que aparentava ser o principal torna-se secundário, e o Brasil se apresenta como o primeiro experimento efetivo da modelagem de Habermas, em que a dimensão sistêmica, longe de ser objeto de um ataque frontal da sociedade, está destinada a sofrer o seu assédio, por meio de uma renovada esfera pública, que pode ter no recém-criado Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social uma de suas melhores expressões. A precedência da sociabilidade e da política e a de suas instituições como regiões formadoras da vontade coletiva sobre a dimensão dura da economia resolvem o enigma: o que ainda não mudou mudará, se soubermos compreender e agirmos de acordo com esse entendimento de que, no mais, tudo mudou.

Luiz Werneck Vianna, 64, professor pesquisador do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), é autor de "A Democracia e os Três Poderes no Brasil" (UFMG, 2002).


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