UOL




São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A classe média vai ao paraíso

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

A ANS (Agência Nacional de Saúde), identificando o crescente número de planos de saúde inadimplentes e usuários mal atendidos, propõe a cobrança de mais 1% ao ano de uma mensalidade para a criação do Fundo Garantidor de Beneficiários de Planos de Saúde, o FGBPS. É pouco para o usuário, engorda o caixa da ANS mas não resolve, só prolonga a agonia de todos. A questão é mais profunda.
Vale a pena transcrever trechos de artigos que publiquei nesta mesma página em 1996 e 97, quando se discutia, no Congresso Nacional, a regulamentação dos planos de saúde, para mostrar como erros ocorridos há cinco anos -evitáveis naquele então- são responsáveis por tragédias de hoje. Para salientar também como se portou o governo anterior, quando se tratava de escolher entre proteger interesses econômicos ou a saúde da classe média brasileira, e, principalmente, para corrigir esse grave problema sem repetir desmandos anteriores:
"Dessa vez [a regulamentação dos planos] está jogando a classe média brasileira, como seres descartáveis, para fora do sistema público de saúde, oferecendo essa "rica massa pobre" para ser explorada pela venda maciça de um produto enganoso numa área sagrada e de responsabilidade do governo, que é a saúde (...) Não foi por outras razões que a sociedade civil brasileira, representada por entidades como o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Federal de Medicina, a Associação Médica Brasileira, o Sindicato dos Médicos, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, o Procon, o Idec, além de presidentes de inúmeras entidades de usuários, repudiou publicamente o projeto".
Mesmo assim, o regulamento defendido pelo governo e sua base parlamentar foi aprovado e ocorreu a migração dos usuários do SUS (Sistema Único de Saúde), pertencentes à classe média e parte do proletariado, aos planos de saúde, seguindo a cartilha privatizante do FMI e tirando das costas do Estado a responsabilidade sobre os pacientes que ainda tinham capacidade de reclamar.


Não podemos ignorar os 40 milhões de brasileiros que dependem dos planos [de saúde] e recebem atendimento precário


Esse mesmo governo, após a regulamentação dos planos, começou a apertá-los com exigências crescentes, o que os está levando à inadimplência. Novamente é o usuário o que mais sofre. São prejudicados também médicos e demais profissionais, pelas baixas tabelas de pagamento, salários e ruins condições de trabalho. Os hospitais prestadores estão à beira da falência.
Isso tudo muda substancialmente a situação da saúde e a sua solução nos dias de hoje. Não podemos ignorar os 40 milhões de brasileiros que dependem dos planos e recebem atendimento falho, especialmente os que pagam mensalidades mais baratas. Devemos levar em conta também o aumento do desemprego e, portanto, a inadimplência dos usuários.
Várias empresas que mantinham planos coletivos deixaram de dar cobertura de assistência médica aos seus empregados, agravando a situação. O SUS, que pelos precários financiamento e gestão está com enorme demanda reprimida, deverá tê-la agravada com esse refluxo de pacientes. É o caminho do caos e não será com a ANS, órgão esdrúxulo, nem com fontes adicionais do tipo FGBPS -chamado por Elio Gaspari de "Foste Garfado Bonito pela Burocracia da Saúde"- que se resolverá a questão.
Não há outra saída, é preciso reorganizar o sistema público de saúde e abrigar aí os usuários de planos artificialmente baratos e enganosos. Isso é possível. É apenas uma complicada e seríssima questão de gestão, criatividade e reestruturação da nossa política de saúde. A presença de parte da classe média no sistema público não só é necessária para ela, que não pode arcar com planos caros, como o é para aprimorar o próprio sistema, pois este estamento conhece seus direitos e exige um atendimento digno, exercendo o controle social que é a alma da democracia.
Saúde não é coisa barata nem simples e não é possível fazer milagres. Precisamos de uma política com princípios universais e prática nacional, não apenas reagindo aos fatos de forma emergencial, mas com programação estrutural que se antecipe a eles para garantir a ética e a eficiência do sistema privado e a organização e o aprimoramento do sistema público, que é pré-pago pelos impostos.


José Aristodemo Pinotti, 68, deputado federal pelo PMDB-SP, é professor titular de ginecologia da Faculdade de Medicina da USP. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: José de Filippi Jr.: Vinte anos da "cidade vermelha"

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.