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TENDÊNCIAS/DEBATES
Quando a barbárie sai do gueto
PAULO SÉRGIO PINHEIRO e MARCELO DAHER
É nos guetos que ocorre a maior parte dos crimes violentos. Quase sempre encontram o silêncio e a indiferença como respostas
A BALBÚRDIA em torno da necessidade do rebaixamento da
idade de responsabilidade penal e da revisão do tratamento dado
aos adolescentes infratores não é novidade no Brasil.
A busca da solução mágica na forma
da lei e do discurso duro pedindo justiça tem sido a regra dos debates que
sucedem crimes bárbaros, especialmente se cometidos fora dos guetos.
Basta ver o Datafolha do último domingo, que mostra crescimento do
apoio à pena de morte: 55% da população é a favor da medida. O maior
percentual de apoio (64%) está entre
os que têm rendimento familiar superior a dez salários mínimos mensais.
E, no entanto, é nos guetos -favelas e bairros das periferias das metrópoles onde estão segregados os afrodescedentes e os pobres- que ocorre
a maior parte dos crimes violentos e
neles prevalecem as maiores taxas de
homicídios de adolescentes e de jovens no mundo. Quase sempre essa
violência encontra o silêncio e a indiferença como respostas.
Quando uma barbaridade se abate
sobre uma vítima fora dos guetos, porém, o choque de realidade segue implacável rotina. Após uma cacofonia
de repúdio ao crime, governantes ostentam sua indignação e solidariedade com as famílias das vítimas, legisladores ameaçam votar projetos de lei
a toque de caixa, passeatas clamam
pela paz etc. Tanto barulho para nada.
Com o tempo, o tema da segurança
volta para baixo do tapete. Nas semanas após o crime bárbaro, muitas chacinas, algumas balas perdidas de revólver de policiais acertam casualmente uma moradora no gueto. Mal
são notadas: compaixão e clamor só
para vítimas de fora dos guetos.
O debate aprofundado sobre a prevenção da violência é entediante demais, frio diante da tragédia. Já a retórica do sangue é ágil, combina docemente com a sede de vingança.
No Carnaval das respostas fáceis, a
escola da mão pesada ganha novos
adeptos entre intelectuais que também babam sangue. Pregam penas de
internação mais longas para crianças
e adolescentes em conflito com a lei,
condenando-os alegremente às sevícias e aos estupros que prevalecem
nas instituições fechadas.
Esquecem que o direito penal é a
vertente mais discriminatória do direito, pois se abate quase que unicamente sobre os habitantes dos
guetos.
A pregação furiosa pelo endurecimento penal agrava a discriminação
racial e social sem sequer arranhar a
escalada da criminalidade.
As mais de duas décadas de consolidação da democracia no Brasil foram
acompanhadas de uma explosão sem
precedentes da violência. A perversa
associação entre o aumento da insegurança e o estabelecimento de um
Estado democrático de Direito é utilizada no ataque aos supostos defensores dos "direitos dos bandidos".
Falar de prevenção da violência e
reforma da polícia (estrutura intocada desde a ditadura), apurar adequadamente crimes cometidos por agentes do Estado, assegurar plenamente
o acesso à Justiça, mencionar eficiência e transparência ao divulgar informações sobre criminalidade e ação
policial, proteção das vítimas etc. dá
trabalho e rende pouquíssimo ibope.
Por que lembrar (como fazem as
500 páginas, Estado por Estado, do 3º
Relatório Nacional de Direitos Humanos, publicado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP) que a
maioria dos homicídios no Brasil não
é apurada e que a fácil obtenção de armas de fogo (referendada com apoio
da escola da mão pesada) tem papel
determinante na carnificina?
Para que reconhecer que a larga
maioria dos crimes cometidos por
adolescentes não é violenta, que a
maioria dos adolescentes e adultos
detidos não tem processos julgados
em prazos razoáveis? Por que lembrar que as prisões mesclam criminosos perigosos e primários?
No ritmo contagiante do endurecimento penal, compensamos o sempre adiado espetáculo do crescimento
econômico com o incomparável e espetacular crescimento na população
carcerária. Entre 2000 e 2006, aumentamos em 72% o número total de
presos. Temos em números absolutos
e proporcionais a maior quantidade
de presos da América Latina. Sem que
a criminalidade diminua.
Reduzir a idade da responsabilidade penal e garantir estadas mais prolongadas no sistema de detenção de
crianças e adolescentes contribuirá
para aprofundar ainda mais o ciclo de
comprovada incompetência para
proteger a população.
Ocupar "manu militari" os guetos,
deixando livres os chefes do crime, saciar a sede de vingança, torturando
suspeitos, e encarcerar mais não trará
paz. Ao contrário, alargará ainda mais
a insegurança, engabelando a população até a próxima temporada de guerra (frouxa e incompetente) ao crime.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 63, é expert independente do
secretário-geral da ONU para a violência contra a criança.
Publicou em 2006 o Relatório Mundial sobre Violência
contra a Criança. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos do governo FHC.
MARCELO DAHER, 29, é especialista em direitos humanos do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU (Genebra).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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