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Os males do sigilo
Caso prevalecesse a regra da transparência nas despesas do Executivo, muito da crise do dossiê poderia ter sido evitado
DOS VÁRIOS enigmas que
cercam o caso do dossiê de gastos do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, existe um especialmente relevante, que foge
às atribuladas circunstâncias das
investigações e desmentidos oficiais. Pode resumir-se numa
questão: por que deveriam ser sigilosos os gastos pessoais de um
presidente da República?
Em seu depoimento à CPI dos
cartões corporativos, o ministro
Jorge Félix, do GSI (Gabinete de
Segurança Institucional), contribuiu pouco para esclarecer essa
questão. Deveriam permanecer
ocultos os gastos com alimentação e bebidas no avião presidencial? "Em princípio, sim", respondeu o ministro.
Todavia, parece razoável dizer
que a atual crise política, que
tantas energias e tempo tem
consumido do Executivo e do
Congresso, poderia ter sido evitada caso prevalecesse a regra de
máxima transparência possível
nas despesas palacianas.
Só por um espírito de demagogia elementar alguém diria que
padrões elevados de consumo
não se justificam numa residência presidencial. Não faz sentido
esperar que o presidente do Brasil se aloje numa casa operária,
ou que receba seus visitantes
com uma dieta, digamos, à base
de tapioca. Entre a despesa adequada ao cargo e o abuso principesco há, por certo, uma diferença, que só a ausência de sigilo
permitiria dimensionar.
Se há risco para a segurança
das autoridades, este residiria,
em última hipótese, na informação sobre a origem dos fornecedores dos bens adquiridos, ou no
que se poderia deduzir a respeito
da agenda de deslocamentos do
presidente da República e de sua
comitiva. Nada que não pudesse,
depois de um certo prazo, ser exposto ao conhecimento público,
ou cercar-se de precauções técnicas mais sofisticadas que o sigilo absoluto.
Fonte muito maior de instabilidade e de prejuízo ao interesse
público tem sido, em todo caso, a
guerrilha de informações e vazamentos em que oposição e governo se emaranharam a propósito
de despesas que, pelo que se conhece, nada tiveram de anormal.
Depois de um abuso notório -o
da ex-ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro-, o debate
perdeu-se em diversos desvãos
de insensatez.
Intentou-se até a exploração
do preconceito contra Lula, um
ex-sindicalista que agora tem sua
rotina regada aos néctares reservados a outra classe. O governo
reagiu com um dossiê destilado
nos escaninhos menos límpidos
da Casa Civil: que fosse apenas
um expediente preventivo para
reagir na mesma moeda, vá lá.
Mas que se pretenda a todo
custo manter o sigilo do atual
presidente, enquanto se jura inocência no caso do dossiê, eis uma
contradição evidente do ponto
de vista da ética política. Não há
outra maneira de saná-la a não
ser pela regra da mais ampla
transparência. O país seria poupado, sem dúvida, dos lastimáveis efeitos de um entrevero que
o paralisa, enquanto moralismos
falsos e maquiavelismos de gabinete se engalfinham inextricavelmente.
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