São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Brumas do Tibete

ALDO PEREIRA

Quem apóia a campanha do dalai-lama deveria, primeiro, perguntar se eventual restauração instituiria direitos humanos no Tibete

O POVO tibetano acredita descender de um macaco criado por Avalokitesvara ("senhor que observa o mundo") e baixado a este plano inferior, onde gerou seis híbridos numa demônia que o seduziu. A nação tibetana reverencia Tenzin Gyatso, 72, como "emanação" (manifestação corpórea) desse macaco primordial. Tal linhagem legitima seu título de dalai-lama, sumo sacerdote e monarca do Tibete. (Dalai, "[profundo e grande como] oceano"; lama, "superior [de mosteiro]".)
Tibetanos alegam razões de religião e identidade nacional como essas para pleitear o retorno do dalai-lama. Mas, tirante o clero, poucos pretendem ver restaurada a ordem social que ele regia.
No século 8, o Tibete anexou ou avassalou várias nações da Ásia Central, inclusive a China, que teve a capital saqueada em 763. Na gangorra da história, o Império Mongol ascendeu e suplantou o tibetano. No século 13, foi a China que impôs ao Tibete e à Mongólia a vassalagem, que ela interpreta como anexação.
Durante os sete séculos seguintes, a China negligenciaria colonizar o remoto Tibete. No século 19, o Império Chinês era baleia ferida e acossada por tubarões. Cedeu metade do território a potências européias, que ainda lhe extorquiram privilégios comerciais no resto do país, e puniram recalcitrâncias com invasão e mais extorsões. A conseqüente desmoralização da monarquia propiciou a revolução republicana de 1911-12.
Pescando nessas águas agitadas, o Tibete declarou independência. A China não reagiu, afligida então, e nas décadas seguintes, por calamidades de fome e uma enxurrada de sangue: rebeliões e guerra civil entre comunistas e nacionalistas. Os dois blocos se aliaram em 1937-45 para repelir a invasão japonesa, mas depois voltaram a guerrear entre si até 1949, quando os comunistas assumiram o controle do território continental.
Em 1951, o exército chinês ocupou o Tibete, e quadros comunistas assumiram a administração. Na teocracia deposta, sacerdotes e nobres possuíam todas as terras e demais meios de produção. Camponeses, nômades, pequenos comerciantes e mendigos formavam minoria relativamente livre da plebe. Desta, uns 90% eram servos; outros 5%, escravos.
O amo sustentava o escravo, que prestava serviços domésticos e não produzia, mas não o servo. Ambos passavam sua condição aos filhos. A lei sancionava mutilações e outras torturas. Deficiências de higiene e nutrição matavam quase metade dos bebês no primeiro ano de vida. Não havia escola pública. A taxa de analfabetismo chegava a 90%.
Em lugar de partidos, disputavam então o poder diferentes seitas budistas. Como o celibato o priva de herdeiro, a morte de um dalai-lama enseja processo sucessório que consiste em reconhecer "emanação" (reencarnação) do morto em algum menino tibetano. Lamas de alta hierarquia promovem a busca segundo oráculos, visões e pistas crípticas legadas pelo antecessor.
Em troca de autonomia, o dalai-lama reconheceu a soberania chinesa em 1951. Mas, no contexto da Guerra Fria, a Agência Central de Inteligência do governo americano (CIA) passou a prover insurretos tibetanos de treinamento e armas.
Em 1959, o Exército chinês reprimiu uma rebelião com brutal eficiência. O dalai-lama, que deixara a capital pouco antes, fugiu para a Índia. A organização dos tibetanos que o acompanharam admitiria depois que, na década de 1960, recebia da CIA estipêndio anual de 1,7 milhão de dólares ("New York Times", 2/10/1998).
O dalai-lama não reivindica independência para o Tibete, apenas autonomia (leia: restauração dos privilégios). Enquanto isso, o governo central coloniza a região mediante imigração favorecida de chineses das etnias han (dominante na China) e hui (minoria muçulmana). Nos distúrbios de março, tibetanos hostis aos imigrantes incendiaram lojas e outras propriedades desses "estrangeiros".
Quem apóia a campanha do dalai-lama deveria, primeiro, perguntar se eventual restauração instituiria direitos humanos no Tibete. Segundo, perceber que a estratégia de incitar tibetanos à revolta meramente agrava sua opressão, porque o governo chinês não cederá: é imune a sanções diplomáticas ou econômicas e sabe que o interesse comercial do mundo na China torna quixotesca a proposta de boicote da Olimpíada.
Outras minorias étnicas da China, além da tibetana, concorrem à liberdade na arena política desta Olimpíada. Mas nenhuma delas será livre enquanto a própria China não for.


ALDO PEREIRA , 75, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.
aldopereira.argumento@uol.com.br

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