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TENDÊNCIAS/DEBATES
Brumas do Tibete
ALDO PEREIRA
Quem apóia a campanha do dalai-lama deveria, primeiro, perguntar se eventual restauração instituiria direitos humanos no Tibete
O POVO tibetano acredita descender de um macaco criado
por Avalokitesvara ("senhor
que observa o mundo") e baixado a
este plano inferior, onde gerou seis
híbridos numa demônia que o seduziu. A nação tibetana reverencia Tenzin Gyatso, 72, como "emanação"
(manifestação corpórea) desse macaco primordial. Tal linhagem legitima
seu título de dalai-lama, sumo sacerdote e monarca do Tibete. (Dalai,
"[profundo e grande como] oceano";
lama, "superior [de mosteiro]".)
Tibetanos alegam razões de religião
e identidade nacional como essas para pleitear o retorno do dalai-lama.
Mas, tirante o clero, poucos pretendem ver restaurada a ordem social
que ele regia.
No século 8, o Tibete anexou ou
avassalou várias nações da Ásia Central, inclusive a China, que teve a capital saqueada em 763. Na gangorra da história, o Império Mongol ascendeu
e suplantou o tibetano. No século 13,
foi a China que impôs ao Tibete e à
Mongólia a vassalagem, que ela interpreta como anexação.
Durante os sete séculos seguintes, a
China negligenciaria colonizar o remoto Tibete. No século 19, o Império
Chinês era baleia ferida e acossada
por tubarões. Cedeu metade do território a potências européias, que ainda
lhe extorquiram privilégios comerciais no resto do país, e puniram recalcitrâncias com invasão e mais extorsões. A conseqüente desmoralização da monarquia propiciou a revolução republicana de 1911-12.
Pescando nessas águas agitadas, o Tibete declarou independência.
A China não reagiu, afligida então, e
nas décadas seguintes, por calamidades de fome e uma enxurrada de sangue: rebeliões e guerra civil entre comunistas e nacionalistas. Os dois blocos se aliaram em 1937-45 para repelir a invasão japonesa, mas depois voltaram a guerrear entre si até 1949,
quando os comunistas assumiram o
controle do território continental.
Em 1951, o exército chinês ocupou
o Tibete, e quadros comunistas assumiram a administração. Na teocracia
deposta, sacerdotes e nobres possuíam todas as terras e demais meios
de produção. Camponeses, nômades,
pequenos comerciantes e mendigos
formavam minoria relativamente livre da plebe. Desta, uns 90% eram
servos; outros 5%, escravos.
O amo sustentava o escravo, que
prestava serviços domésticos e não
produzia, mas não o servo. Ambos
passavam sua condição aos filhos. A
lei sancionava mutilações e outras
torturas. Deficiências de higiene e
nutrição matavam quase metade dos
bebês no primeiro ano de vida. Não
havia escola pública. A taxa de analfabetismo chegava a 90%.
Em lugar de partidos, disputavam
então o poder diferentes seitas budistas. Como o celibato o priva de herdeiro, a morte de um dalai-lama enseja processo sucessório que consiste
em reconhecer "emanação" (reencarnação) do morto em algum menino tibetano. Lamas de alta hierarquia promovem a busca segundo oráculos, visões e pistas crípticas legadas pelo
antecessor.
Em troca de autonomia, o dalai-lama reconheceu a soberania chinesa
em 1951. Mas, no contexto da Guerra
Fria, a Agência Central de Inteligência do governo americano (CIA) passou a prover insurretos tibetanos de treinamento e armas.
Em 1959, o Exército chinês reprimiu uma rebelião com brutal eficiência. O dalai-lama, que deixara a capital pouco antes, fugiu para a Índia. A
organização dos tibetanos que o
acompanharam admitiria depois que,
na década de 1960, recebia da CIA estipêndio anual de 1,7 milhão de dólares ("New York Times", 2/10/1998).
O dalai-lama não reivindica independência para o Tibete, apenas autonomia (leia: restauração dos privilégios). Enquanto isso, o governo central coloniza a região mediante imigração favorecida de chineses das etnias han (dominante na China) e hui
(minoria muçulmana). Nos distúrbios de março, tibetanos hostis aos
imigrantes incendiaram lojas e outras
propriedades desses "estrangeiros".
Quem apóia a campanha do dalai-lama deveria, primeiro, perguntar se
eventual restauração instituiria direitos humanos no Tibete. Segundo, perceber que a estratégia de incitar tibetanos à revolta meramente agrava sua
opressão, porque o governo chinês
não cederá: é imune a sanções diplomáticas ou econômicas e sabe que o
interesse comercial do mundo na
China torna quixotesca a proposta de
boicote da Olimpíada.
Outras minorias étnicas da China,
além da tibetana, concorrem à liberdade na arena política desta Olimpíada. Mas nenhuma delas será livre enquanto a própria China não for.
ALDO PEREIRA , 75, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.
aldopereira.argumento@uol.com.br
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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