São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 2000


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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nosso futuro sem cara


Preferimos um pânico de consumo à ameaça real da bandidagem na esquina e do crime impune


CANDIDO MENDES

A Folha, pelo Mais!, vem de nos dar pesquisa nacional sobre a identidade brasileira, que permite leituras instigantes de onde estamos e como nos vemos nesta hora em que a globalização embaralha os nossos retratos interiores ("Relatório Folha da utopia brasileira", Mais!, 23/4). Já estamos numa civilização midiática, ao mesmo tempo em que não temos a visão do tempo histórico, ou mal começamos a perceber a marginalização do país. Admiramos os Estados Unidos, mas vamos ser uma nação distinta das outras, ou melhor, muito diferente, para 47% dos entrevistados.
Revelamos, também, uma enorme ambiguidade interior quanto a medos e perigos nacionais, deixando à mostra uma precária inserção real no nosso tempo. Mantemos uma enorme auto-estima e reconhecemos o desemprego como o nosso pior problema. Entretanto, quanto aos temores de futuro, não é a violência interna o que mais nos aflige, numa visão condizente com a proletarização do país, quando a lei do cão rima com a falta de pão.
Muito mais grave e, no caso, fantasmagórico é o receio de uma guerra externa em todos os trinques dos mísseis inteligentes e dos bombardeiros eletrônicos, das catástrofes "limpas" -em que, afinal, pensamos estar na mesma soleira da Guerra do Golfo, da Bósnia ou de Kosovo. Preferimos um pânico de consumo à ameaça real da bandidagem na esquina e do crime impune.
Mas reconhece-se que o desvalidamento econômico nada tem a ver com a confiança na participação política. Somos um país que acredita (78%) na força do voto e na mobilização popular.
São as igrejas e os movimentos comunitários que criam a cidadania, muitíssimo mais do que partidos e a velha representação política.
Este Brasil que se nega à demissão histórica atribui as nossas desditas à corrupção mais que à incompetência dos políticos. Aparentamo-nos aos impasses do governo de Moscou. Mas já passamos por inteiro para o universo da mídia, nos heróis galácticos que cultuamos, fora de uma experiência nacional sofrida, de lideranças em bem da coletividade ou do sacrifício, como padrão de grandeza e de real identificação coletiva. Ayrton Senna é, de longe, o novo superbrasileiro, e um discretíssimo segundo lugar é dividido entre Pelé e Getúlio, como um verdadeiro protagonista, e não um ícone de uma saga vivida de dentro das nossas aspirações de povo e sua melhoria. Da mesma forma, a mídia é responsável por esse panteão da superfigura isolada, na competição sideral, desengastado da sua nação e, afinal, da marca Brasil, que acaba na plaqueta do uniforme do piloto, ao lado de tantos anúncios de escuderias ou produtos de consumo-monstro.
Repetimos a síndrome que deixou, como evento nacional, a façanha de Santos Dumont. Com tecnologia mundial e a assistência que lhe permitiu lá fora a sua fortuna, realizou diante da torre Eiffel o vôo do 14-Bis.
O que reconhecemos também como nosso contributo para o mundo vai, num primeiro lugar dominante, ao esporte. Nosso panteão parece ser definitivamente o da Olimpíada, dos Oscares, da Fórmula 1 -e nessas rinhas as que cada vez mais celebram na pista ou na quadra de tênis o heroísmo individual desengastado. Nessa linha arriscamo-nos, a cada quatro anos, a nos transformar, de vez, num país-simulacro, nascido da mídia, que faz a nossa cabeça e antes, até, mostra o que devemos ver, ou o que fica no descarte ou no silêncio de uma censura universal. Consola-nos, porém, que o segundo item de exportação está enraizado na nossa cultura e é a música popular brasileira.
De qualquer forma, surpresa boa também temos, em terceiro e quarto lugar, nesse reconhecimento dos valores da nossa diferença, a mostrar lá fora não só a nossa justa e cansada vaidade da mistura de raças, mas essa marca do jeito, na forma de estabelecermos um novo relacionamento social do país. Também nos mostra o Mais! que não ganhamos ainda o sinal mais importante da maturação de uma cultura, que o experimento do seu tempo histórico; do que custa construir a nação e, pois, o sacrifício entre as gerações, consentido em bem desse projeto final de um Brasil para si. Temos pressa, muita pressa e, na verdade, o futuro para a larga maioria dos entrevistados não pode durar mais de uma década, para que nos transformemos numa grande potência. Mas essa promessa não tem um protagonista de hoje que maciçamente a absorva. Quem mais perto chega é Lula, com 5% da manifestação popular.
Salienta-se, também, que o futebol não é mais a festa da nossa identidade lá fora. Os supercraques se fundem nessas equipes sem cara, em que a nossa mundialização começou pelo recrutamento dos prodígios locais do esporte-rei, como membros de uma dourada legião estrangeira. Pelé teria sido o último legítimo herói nacional nessa vertente, somando a performance inaudita a toda uma simbologia nacional do seu sucesso, de que o tetra foi o desfecho. A de um país que sabe que o desemprego é o seu pior problema, acredita no voto e, nas mesmas proporções, tem orgulho de ser brasileiro. Mas sem saber para onde vamos, porém sabendo que somos diferentes -muito mais dos Estados Unidos do que de uma Rússia tropical.


Candido Mendes, 71, é presidente do "senior board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e membro da Academia Brasileira de Letras.



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