|
Próximo Texto | Índice
Acordo sigiloso
A regra da publicidade dos atos dos governantes exige que Lula explicite o que está em sua pauta de negociação com o papa
A CHEGADA do papa Bento 16 é motivo de justo
júbilo para os católicos
brasileiros. Além da visita do sumo pontífice, o país vai
ganhar o primeiro santo genuinamente nacional na figura de
frei Galvão, que será canonizado
amanhã em São Paulo.
A viagem papal traz também
motivos para preocupação. Há
informações de que a Santa Sé
prepara secretamente com o
Brasil uma concordata, isto é,
um acordo diplomático para tratar de "interesses comuns".
A existência de negociações
entre os dois Estados foi confirmada à Folha pelo próprio dom
Tarcisio cardeal Bertone, que
ocupa a segunda posição na hierarquia da Igreja Católica. Os
termos do tratado, entretanto,
permanecem envoltos num
manto de sigilo.
É justamente aí que reside o
problema. Se envolve governos e
é secreto, deve ser ruim. O princípio republicano da transparência dos atos do poder público
exige que as autoridades brasileiras informem os cidadãos do
que está em pauta.
Pelo que a Folha conseguiu
apurar, a Santa Sé pede que o
Brasil torne as aulas de religião
no ensino fundamental (1ª a 8ª
séries) público obrigatórias
-hoje elas são optativas para o
aluno-, crie mecanismos constitucionais que dificultem uma
eventual ampliação dos casos de
aborto legal -hoje ele é permitido se a gravidez ameaçar a vida
da mãe ou resultar de estupro-
e encontre formas de evitar que
a igreja sofra ações na Justiça,
principalmente trabalhistas.
O Vaticano tem, por certo, o
direito de propor ao Brasil o que
bem lhe aprouver, mas os três
pleitos apresentados são, do
ponto de vista de um Estado laico e republicano, inaceitáveis.
Impor a todos os alunos aulas
de religião é uma flagrante e intolerável violação ao inciso VI do
artigo 5º da Constituição, que assegura a liberdade de consciência e o livre exercício dos cultos
religiosos. No mais, a introdução
das aulas de religião na rede pública, ainda que facultativa para
o aluno, é um dos erros da Carta
de 1988 que o Congresso Nacional deveria rever.
No que diz respeito ao controverso tema do aborto, os argumentos em favor da descriminalização são contundentes. Não
apenas a igreja mas qualquer ser
humano dotado de um mínimo
de sensibilidade é contra o procedimento. Daí não se segue que
as mulheres que o fazem clandestinamente devam ser colocadas na cadeia. O assunto precisa
ser tratado como uma questão
de saúde pública, não de moral.
Também é impossível ao Brasil atender ao pedido de isentar a
igreja de prestar contas à Justiça. Fazê-lo implicaria rasgar toda a Constituição.
Felizmente, existem indícios
de que o governo do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, alertado das implicações pelo Itamaraty, não tem nenhuma intenção
de acatar a proposta de concordata. Lula deverá dizer hoje um
polido "não" ao papa ou, na pior
das hipóteses, prolongar as negociações "in saecula saeculorum". E, nisso, a atual administração é especialista.
Próximo Texto: Editoriais: Liberdade monitorada
Índice
|