São Paulo, quinta-feira, 10 de maio de 2007

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Acordo sigiloso

A regra da publicidade dos atos dos governantes exige que Lula explicite o que está em sua pauta de negociação com o papa

A CHEGADA do papa Bento 16 é motivo de justo júbilo para os católicos brasileiros. Além da visita do sumo pontífice, o país vai ganhar o primeiro santo genuinamente nacional na figura de frei Galvão, que será canonizado amanhã em São Paulo.
A viagem papal traz também motivos para preocupação. Há informações de que a Santa Sé prepara secretamente com o Brasil uma concordata, isto é, um acordo diplomático para tratar de "interesses comuns".
A existência de negociações entre os dois Estados foi confirmada à Folha pelo próprio dom Tarcisio cardeal Bertone, que ocupa a segunda posição na hierarquia da Igreja Católica. Os termos do tratado, entretanto, permanecem envoltos num manto de sigilo.
É justamente aí que reside o problema. Se envolve governos e é secreto, deve ser ruim. O princípio republicano da transparência dos atos do poder público exige que as autoridades brasileiras informem os cidadãos do que está em pauta.
Pelo que a Folha conseguiu apurar, a Santa Sé pede que o Brasil torne as aulas de religião no ensino fundamental (1ª a 8ª séries) público obrigatórias -hoje elas são optativas para o aluno-, crie mecanismos constitucionais que dificultem uma eventual ampliação dos casos de aborto legal -hoje ele é permitido se a gravidez ameaçar a vida da mãe ou resultar de estupro- e encontre formas de evitar que a igreja sofra ações na Justiça, principalmente trabalhistas.
O Vaticano tem, por certo, o direito de propor ao Brasil o que bem lhe aprouver, mas os três pleitos apresentados são, do ponto de vista de um Estado laico e republicano, inaceitáveis.
Impor a todos os alunos aulas de religião é uma flagrante e intolerável violação ao inciso VI do artigo 5º da Constituição, que assegura a liberdade de consciência e o livre exercício dos cultos religiosos. No mais, a introdução das aulas de religião na rede pública, ainda que facultativa para o aluno, é um dos erros da Carta de 1988 que o Congresso Nacional deveria rever.
No que diz respeito ao controverso tema do aborto, os argumentos em favor da descriminalização são contundentes. Não apenas a igreja mas qualquer ser humano dotado de um mínimo de sensibilidade é contra o procedimento. Daí não se segue que as mulheres que o fazem clandestinamente devam ser colocadas na cadeia. O assunto precisa ser tratado como uma questão de saúde pública, não de moral.
Também é impossível ao Brasil atender ao pedido de isentar a igreja de prestar contas à Justiça. Fazê-lo implicaria rasgar toda a Constituição.
Felizmente, existem indícios de que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alertado das implicações pelo Itamaraty, não tem nenhuma intenção de acatar a proposta de concordata. Lula deverá dizer hoje um polido "não" ao papa ou, na pior das hipóteses, prolongar as negociações "in saecula saeculorum". E, nisso, a atual administração é especialista.


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