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CARLOS HEITOR CONY
Gripes e gripados
RIO DE JANEIRO - Apesar dos
muitos e desnecessários anos que
carrego nas costas, não cheguei a
este mundo a tempo de pegar a espanhola, com a qual a gripe suína,
agora com um nome cabalístico e
esterilizado, vem sendo comparada. As duas nada têm a ver, pelo
menos até agora, e pelos depoimentos dos contemporâneos da peste.
Passei a infância ouvindo relatos
de sobreviventes, que era a população inteira do Rio daquela época.
Os mortos eram empilhados na
porta da rua para que a prefeitura
os removesse. O serviço municipal
entrou em pane, o jeito era os parentes pegarem o falecido e um
bonde que passava de manhã e de
tarde: botavam o corpo lá dentro e
o bonde seguia cheio de mortos até
uma vala aberta pela Saúde Pública.
Não precisavam pagar passagem,
que era de dois tostões, tabela da
Light&Power, que os jornais gostavam de chamar "Polvo Canadense".
Mário Filho, autor do clássico "O
negro no futebol brasileiro", que
deu nome ao estádio do Maracanã,
irmão de sangue do Nelson Rodrigues e meu irmão por consenso
mútuo, tinha o projeto de escrever
um romance cujo título seria "O
Carnaval de 1919". Segundo Mário,
no ano seguinte à gripe, aqueles
que sobreviveram à peste, mas sentiram o hálito da morte no pescoço,
entregaram-se a depravações compensatórias. Orgias coletivas e desesperadas, nas quais valia tudo.
Procuravam esquecer os meses em
que a vida de todos estava por um
fio, ninguém passava daquela noite:
o sujeito ia atravessar a rua em plena saúde, chegava definitivamente
morto na calçada oposta.
Nem um presidente da República
escapou da peste. Desse susto não
devemos temer. Lula já garantiu
que tanto a crise econômica como a
gripe são coisas dos outros.
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