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São Paulo, terça-feira, 10 de junho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Lula e a montanha

RIO DE JANEIRO - O descompasso entre a figura pessoal de Lula, seu carisma incontestável de líder popular, e a figura presidencial que desde janeiro assumiu e até agora não encarnou em sua nova posição pública -obviamente a de presidente da República- faz lembrar uma prática que, ao longo dos séculos, homens que mudaram a história tiveram o cuidado de adotar.
Antes de trazer o decálogo para seu povo -decálogo que até hoje rege a grande maioria da humanidade-, Moisés subiu ao Sinai, ficou lá alguns dias e noites e de lá desceu com as tábuas da lei. Antes de iniciar sua vida pública, Cristo retirou-se ao deserto, jejuou durante 40 dias e 40 noites e só depois disso é que se atreveu a ensinar ao homem a nova lei que, em linhas gerais, ainda é a lei moral e espiritual do ocidente.
Maomé também foi à montanha, embora digam por aí que a montanha é que foi a Maomé. O fato é que ele se retirou para meditar, pensar muito e, só então, como legislador e soldado, criar a imensa legião de crentes que o consideram o único intérprete de Allah.
Não estou aconselhando Lula a subir o Sumaré, a jejuar e a comer gafanhotos nem a tentar conversar pessoalmente com o Senhor. Mas sua atuação pública ainda não convence. Fala muito, fala até demais. E diz mais ou menos a mesma coisa, atribuindo as nossas dificuldades aos outros e assegurando que "não permitirá" isso ou aquilo, como se a taxa de juros, a crise na Previdência, a distribuição de renda, a violência urbana e outros problemas dependessem diretamente de sua permissão.
Seria assombroso se Lula declarasse em suas falas ao povo: "Meus companheiros, permitirei as injustiças, a degradação ambiental, os assaltos ao erário público e os assaltos a cidadãos indefesos". Noutro dia, em reunião com intelectuais paulistas, ouviu-se a frase do Eclesiastes: "Há tempo para plantar e tempo para colher". Nada mais certo. Há tempo para falar e tempo para agir.


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