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CARLOS HEITOR CONY
Lula e a montanha
RIO DE JANEIRO - O descompasso entre a figura pessoal de Lula, seu carisma incontestável de líder popular, e a figura presidencial que desde janeiro assumiu e até agora não encarnou em sua nova posição pública
-obviamente a de presidente da República- faz lembrar uma prática
que, ao longo dos séculos, homens que mudaram a história tiveram o
cuidado de adotar.
Antes de trazer o decálogo para seu
povo -decálogo que até hoje rege a
grande maioria da humanidade-,
Moisés subiu ao Sinai, ficou lá alguns
dias e noites e de lá desceu com as tábuas da lei. Antes de iniciar sua vida
pública, Cristo retirou-se ao deserto,
jejuou durante 40 dias e 40 noites e só
depois disso é que se atreveu a ensinar ao homem a nova lei que, em linhas gerais, ainda é a lei moral e espiritual do ocidente.
Maomé também foi à montanha,
embora digam por aí que a montanha é que foi a Maomé. O fato é que
ele se retirou para meditar, pensar
muito e, só então, como legislador e
soldado, criar a imensa legião de
crentes que o consideram o único intérprete de Allah.
Não estou aconselhando Lula a subir o Sumaré, a jejuar e a comer gafanhotos nem a tentar conversar pessoalmente com o Senhor. Mas sua
atuação pública ainda não convence.
Fala muito, fala até demais. E diz
mais ou menos a mesma coisa, atribuindo as nossas dificuldades aos outros e assegurando que "não permitirá" isso ou aquilo, como se a taxa de
juros, a crise na Previdência, a distribuição de renda, a violência urbana
e outros problemas dependessem diretamente de sua permissão.
Seria assombroso se Lula declarasse
em suas falas ao povo: "Meus companheiros, permitirei as injustiças, a degradação ambiental, os assaltos ao
erário público e os assaltos a cidadãos indefesos". Noutro dia, em reunião com intelectuais paulistas, ouviu-se a frase do Eclesiastes: "Há tempo para plantar e tempo para colher". Nada mais certo. Há tempo para falar e tempo para agir.
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