São Paulo, sexta-feira, 10 de julho de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O sertanejo é, antes de tudo, um forte

ARNALDO NISKIER


Os textos euclideanos são extremamente coerentes e, hoje, despertarão grande interesse por parte dos estudantes


PEDE-ME A direção da 13ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo (RS) que lhes fale sobre a atualidade de Euclides da Cunha, um dos maiores (e mais complicados) escritores brasileiros de todos os tempos. Sua narrativa a respeito de Antônio Conselheiro, em "Os Sertões", é bem elucidativa do seu personalíssimo estilo: "Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerceu grande influência no espírito das classes populares, servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade.
Deixou crescer a barba e cabelos..." Dois paulistas se encontram na Academia Brasileira de Letras e o tema é o centenário da morte de Euclides da Cunha, nascido em Cantagalo (RJ), no dia 20 de janeiro de 1866. A recordação foi até aquela manhã de domingo, 15 de agosto de 1909, quando o genial autor de "Os Sertões" foi assassinado pelo amante da sua esposa, Ana, o tenente Dilermando de Assis, com quem trocou tiros no bairro carioca da Piedade.
Um dos interlocutores (Cícero Sandroni) lembrou as sucessivas ausências de Euclides do lar, absorvido pelas obras a que estava obrigado, como engenheiro, inclusive a famosa ponte de São José do Rio Pardo, até hoje de pé. O outro (Paulo Nathanael Pereira de Souza) confirmou esses vazios: "Foi no interior paulista que ele escreveu as sucessivas matérias do jornal "O Estado de S. Paulo", que deram origem à epopeia de "Os Sertões". E construiu diversas casas".
Deixando de lado a tragédia que marcou o fim de um dos nossos maiores escritores, concentramo-nos na obra literária do acadêmico Euclides da Cunha. Homem de grande cultura, misto de civil e militar, foi engenheiro, historiador, geógrafo, jornalista, poeta e permanente defensor da natureza, o que na sua época não era muito comum. Podemos qualificá-lo como engenheiro das palavras. Ajudou, com a sua métrica poética, a compreender melhor o Brasil. Condenou veementemente o crime cometido pela República nascente, no interior baiano, dizimando a população sertaneja de Canudos.
Antes do episódio histórico, chegou a condenar o movimento messiânico de Antônio Conselheiro, "que deveria ser debelado com pulso forte", mas, ao testemunhar pessoalmente, durante pouco menos de dez dias, o horror da chacina, mudou drasticamente de posição, produzindo o seu libelo de repercussão internacional.
Foi então que nasceu a expressão "o sertanejo é, antes de tudo, um forte", capaz de resistir com bravura a toda espécie de óbice natural ou humano. Euclides foi além e condenou, há mais de cem anos, as queimadas e os desmatamentos. Utilizou o seu linguajar erudito, algumas vezes até incompreensível, para defender a Amazônia e os seus rios caudalosos. Tornou-se um ecologista indignado, como ao dissertar sobre as cidades mortas do interior paulista, após o auge da cultura do café.
Sob esse aspecto, os textos euclideanos são extremamente coerentes e, hoje, certamente despertarão grande interesse por parte dos estudantes, sobretudo de ensino médio, desde que devidamente orientados por mestres competentes. No livro "Contrastes e Confrontos", Euclides da Cunha, que discursou diante do caixão de Machado de Assis, seu contemporâneo, parece adivinhar que a leitura dos seus textos não é um exercício dos mais fáceis.
Para maior proveito, sugere que se considere o "remanso das culturas, na disciplina da atividade, adstrita a longos esforços consistentes". É preciso dissecar esse pensamento, para compreender o sentido do que ele pretendeu com os seus escritos. Vale a advertência, para os que se irão iniciar em Euclides da Cunha, cujo centenário comemoramos neste ano, de que é importante ultrapassar os primeiros passos da caminhada literária. Mesmo em "Os Sertões", se não houver paciência, é bem possível que o leitor desista antes da metade.
Mas, se vencer essa etapa, conhecerá as luzes de um dos textos mais bonitos da língua portuguesa, tão rica de grandes autores.

ARNALDO NISKIER, 73, membro da Academia Brasileira de Letras e presidente do Ciee-RJ (Centro de Integração Empresa-Escola), é professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e autor do livro "Vozes da Educação".


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