São Paulo, quarta-feira, 10 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Para que não se repita

ODED GRAJEW

Os recentes escândalos da política brasileira provocaram em milhões de brasileiros (inclusive em mim) justificados sentimentos de indignação, raiva, tristeza e decepção. Sentimentos que podem ser positivos se, ao demonstrar inconformidade e revolta, possibilitarem ações e atitudes que levem a mudanças, a progressos, a melhoras.
Por outro lado, o ceticismo, o desânimo e a conformidade tomaram conta de muitos outros brasileiros. Esse estado de espírito é ilustrado de forma contundente pelo brilhante e respeitado jornalista Clóvis Rossi na sua coluna de 23/7, nesta Folha, na qual, após relatar alguns fatos recentes decorrentes da CPI dos Correios, afirma: "Se todas as situações descritas acima ocorrem em certo país tropical chamado Brasil, não é mera coincidência. É porque esse país está podre -e não é de hoje. Solução? Não tem não".


Os recentes eventos mostram que a sociedade não deve dar um cheque em branco aos partidos e abdicar da fiscalização


A prevalecer esse sentimento, receio que possamos cair em uma enorme descrença na democracia e na possibilidade de construir um país com mais dignidade, ética e justiça social. As portas para o autoritarismo, o populismo, o individualismo, o salve-se quem puder, a prevalência da lei da selva e da barbárie estariam abertas.
Conhecendo profissionalmente e pessoalmente o jornalista Clóvis Rossi e seu empenho em apoiar causas positivas, sei que seu intuito não é esse. É muito mais o medo que todos temos de acreditar, de nos iludirmos e de sofrermos as dores da decepção, como repetidas vezes tem acontecido. É muito mais a vontade de provocar para sacudir, para que algo transformador possa surgir.
Do meu ponto de vista, se algo de bom pode resultar desta crise para que fatos como estes não se repitam (pelo menos, não com esta extensão, freqüência e gravidade), em primeiro lugar, é a apuração dos fatos e a punição de todos os responsáveis pelos diversos crimes que estão se revelando. Em segundo lugar, é a implementação da reforma política.
Nessa reforma, é fundamental que se mude o financiamento de campanha. O atual sistema é o câncer que está matando a nossa democracia e os valores éticos da nossa sociedade e está na raiz dos nossos problemas econômicos e sociais, o responsável por mantermos a posição de segundo pior país no ranking de distribuição de renda no mundo.
O financiamento privado favorece a eleição de pessoas ricas ou aquelas com acesso a fontes de financiamento. Ao se eleger, atuarão de forma a favorecer seus financiadores e não as pessoas pobres e mais necessitadas. Tal favorecimento pode ser também exercido pelo oferecimento de acesso privilegiado aos recursos públicos. Como ninguém gosta de aparecer nas listas oficiais de financiamento, as empresas e organizações que sonegam impostos e atuam no crime organizado acabam levando vantagem e ocupando espaços cada vez maiores no Estado brasileiro.
Aos críticos do financiamento público asseguro que o financiamento privado resulta em enorme sangria dos recursos públicos, muito maior que o montante que seria destinado às campanhas eleitorais. No financiamento público (que vigora nos países de melhor qualidade de vida do mundo), o estabelecimento de cota máxima de gastos para cada candidato -o que facilita o controle judicial e social-, associado a uma punição rigorosa para infratores (nos EUA e Europa eles são presos), é uma enorme inibição para a corrupção eleitoral.
Acabar com partidos de aluguel e estabelecer a fidelidade partidária é outra tarefa dessa reforma. Precisamos extinguir os milhares de cargos de confiança (a nível federal, estadual e municipal) que, sobretudo, servem para barganhas políticas, muitas vezes com o propósito de direcionar recursos públicos para fins privados. A máquina administrativa necessita de uma burocracia estável para ter um bom funcionamento. Em países adiantados, os cargos de confiança se resumem a algumas dezenas. Outro debate importante é sobre o voto distrital, para aproximar os candidatos e os representantes eleitos dos eleitores.
Se essa reforma política for implementada, a maioria dos congressistas atuais não será reeleita. É o atual sistema que permitiu a eleição deles, e, como nenhum têm vocação para suicida, não implementarão (como não implementaram até agora), por livre e espontânea vontade, medidas que ameacem suas carreiras políticas. No máximo, irão propor medidas superficiais que deixarão intactos os verdadeiros problemas.
Cabe, portanto, à sociedade -e especialmente às entidades da sociedade organizada- articular uma grande frente para formular as propostas e pressionar para que elas sejam implementadas (para valer em 2006 elas precisam ser aprovadas até setembro deste ano).
Creio que os recentes eventos mostraram claramente que a sociedade civil não deve dar um cheque em branco aos partidos e abdicar do seu papel de fiscalizar, cobrar, propor e pressionar.
Senão daremos razão ao jornalista Clóvis Rossi, que, no final de sua coluna (tenho certeza de que a contragosto), escreve: "É impossível fazer um escambo pelo qual toda a elite tupiniquim seja trocada por suecos, digamos. E é igualmente impossível fazer a bugrada tirar o traseiro da cadeira para buscar o direito de viver em um país menos podre".
(Obs: a Suécia tem financiamento público de campanhas, fidelidade partidária, poucos partidos, poucos cargos de confiança e voto distrital).

Oded Grajew, 61, empresário, membro do Conselho de Desenvolvimento Social e Econômico, é presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e idealizador do Fórum Social Mundial. Foi assessor especial do presidente da República (2003).


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