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TENDÊNCIAS/DEBATES
A advocacia, 180 anos depois
LUIZ FLÁVIO BORGES D'URSO
Se há motivo para celebrar, também há para refletir. A proliferação de faculdades tem se mostrado danosa à qualidade do ensino jurídico
APÓS A independência do país,
os brasileiros aboliram uma
corriqueira prática de cruzar o
oceano Atlântico para freqüentar
cursos jurídicos no velho continente,
numa manifestação de soberania.
Em 1827, por decisão do imperador
dom Pedro 1º, estava sacramentada a
criação dos primeiros cursos de ciências jurídicas em terras brasileiras.
Estavam vencidas as limitações vivenciadas pelo Brasil colonial.
São Paulo, ainda uma pequena e
provinciana vila, distante dos centros
de cultura nacionais -Rio de Janeiro
e Outro Preto-, recebeu a pioneira
academia de direito de São Paulo, no
largo São Francisco, cuja primeira
turma tinha apenas 33 estudantes.
Olinda (PE), na mesma data -o 11 de
agosto-, recebeu igual curso.
Nestes quase dois séculos, a advocacia contribuiu para a consolidação
da cultura nacional e a formação da
identidade dos brasileiros.
As arcadas da Faculdade de Direito
do largo São Francisco, seio da advocacia, também serviram de nascedouro a importantes movimentos em defesa da democracia, da cidadania e do
Estado democrático de Direito.
Elas foram foco de resistência da
Revolução Constitucionalista de 1932
e, há 30 anos, palco da leitura da "Carta aos Brasileiros" pelo professor e jurista Goffredo da Silva Telles Júnior.
O documento se tornou um marco
no processo de abertura política do
país. Um de seus trechos afirmava:
"Para nós, a ditadura se chama ditadura, e a democracia se chama democracia. Os governantes que dão nome
de democracia à ditadura nunca nos
enganaram e não nos enganarão".
Embora os 180 anos de instalação
dos cursos jurídicos no Brasil sejam
motivo de comemorações, também
devem ser de reflexão sobre os destinos do ensino jurídico. A Faculdade
de Direito do largo São Francisco, incorporada à USP, continua sendo um
centro de excelência no ensino do direito, mas está longe da realidade de
muitos cursos jurídicos do país.
A proliferação de faculdades de direito tem se mostrado danosa à qualidade do ensino. Dados oficiais apontam que o país tem mais de 1.077 cursos, com 1,5 milhão de estudantes matriculados e 240 mil novas vagas/ano.
A Constituição é bastante clara em
seu artigo 206, VII, ao afirmar que o
ensino no Brasil deve ser ministrado
com garantia de padrão de qualidade.
A OAB certamente tem obrigações
com esse princípio constitucional e,
portanto, com a qualidade do ensino
jurídico. Por isso, constata e critica o
fato de que muitos cursos jurídicos
não atendem aos mínimos requisitos
educacionais e pedagógicos, como
manter corpo docente qualificado,
currículos atualizados com as demandas do mercado, processo seletivo
que realmente teste competências,
bibliotecas atualizadas e infra-estrutura condizente com a formação que
se quer dar ao futuro profissional.
O esforço pela recomposição dos
níveis de qualidade do ensino jurídico
começa pela vedação à abertura de
novos cursos que não disponham de
condições mínimas para funcionar.
A OAB se manifesta de forma opinativa sobre a criação de novos cursos, o que não vem surtindo o efeito
saneador esperado, uma vez que, recentemente, dos 20 cursos autorizados pelo MEC, apenas um recebeu
parecer favorável da OAB.
Essa atitude de condescendência
do Ministério da Educação resulta em
prejuízo para os bacharéis, que, vítimas da formação deficiente, jamais
poderão seguir uma carreira jurídica,
ou seja, ser aprovados no exame de
ordem ou nos concursos para a magistratura, o Ministério Público ou
delegado de polícia.
O exame de ordem consegue espelhar de forma cruel as mazelas dos
cursos jurídicos no Brasil, aprovando
uma média de apenas 20% dos inscritos, como aconteceu no último exame
unificado, aplicado em 17 Estados do
país. E por isso vem recebendo críticas continuadas e sendo alvo de projetos de lei que propõem sua extinção,
o que seria um retrocesso.
O exame busca apurar se o bacharel
possui conhecimentos básicos para
atuar como advogado, constituindo
também uma forma de proteger a
própria sociedade, já que o profissional malformado colocará em risco a
liberdade, o patrimônio, a saúde e a
segurança dos seus clientes.
A advocacia, 180 anos depois, continua fiel às suas grandes bandeiras de
defesa da cidadania e do Estado democrático de Direito. Mas, nas próximas décadas, certamente deve continuar se empenhando pela requalificação do ensino jurídico no país, resgatando um compromisso que permeou 180 anos de gloriosa história e
que, se concretizado, beneficiará
igualmente os estudantes, o jurisdicionado, os operadores do direito e a
própria Justiça.
LUIZ FLÁVIO BORGES D'URSO, 47, advogado criminalista, mestre e doutor em direito penal pela USP, é presidente da OAB-SP (seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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