São Paulo, segunda, 10 de agosto de 1998

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Em defesa de uma instituição



As críticas que faço ao nosso método tradicional de lidar com o ensino da filosofia são também de cunho filosófico


Dei-me conta do quanto pode ser iludida a boa-fé de quem, não conhecendo meus textos, é levado a acreditar em difamações
OSWALDO PORCHAT PEREIRA

Leciono filosofia há 37 anos, dos quais 27 na Universidade de São Paulo. Tempo suficiente para meditar sobre o ensino da filosofia. Tive a grande felicidade de pertencer a uma notável instituição de ensino e pesquisa, o Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Acompanhei de perto sua vida, suas transformações, seu crescimento.
Os vínculos todos que me unem a essa instituição poderão tornar suspeito o que eu disser em seu louvor. Mas, ainda assim, quero fazer aqui um depoimento sobre o meu departamento.
É um antigo, discutido e complexo problema o de como preparar alguém para trilhar os caminhos da filosofia. Tanto mais por ninguém poder ignorar que há maneiras infindamente diversas de conceber a filosofia e de defini-la, de organizar metodicamente a investigação filosófica, de delimitar objetivos e critérios. E, correspondentemente, maneiras infindamente diversas de conceber o próprio ensino da filosofia. A escolha do método de ensinar filosofia é, em última análise, decisão filosófica.
Disso conscientes, os docentes de nosso departamento, em que pesem as grandes diferenças entre nossas posições filosóficas, conseguimos, no entanto, definir alguns procedimentos comuns, sobre os quais nos pusemos basicamente de acordo.
Em primeiro lugar, sempre entendemos que não cabia orientar nossos estudantes em direção desta ou daquela posição filosófica particular. Sempre repudiamos o ensino dogmático de posições doutrinárias.
Por outro lado, tendo sofrido a benéfica influência da historiografia filosófica francesa, cedo aprendemos a importância decisiva do estudo dos grandes autores e de suas obras para a formação do jovem estudioso de filosofia.
Viemos todos a convencer-nos, contrariamente às opiniões de muitos, de que o estudante deveria, desde o princípio dos estudos, pôr-se em contato com os textos filosóficos originais, para que aprendesse a filosofar no contato estreito com os grandes filósofos.
Demos, assim, um lugar importante à história da filosofia em nossas aulas. E muitos de nós (ainda que não todos) adotamos o método estruturalista de leitura dos textos filosóficos, preconizado, entre outros, por M. Guéroult e V. Goldschmidt, nossos mestres.
Essa orientação que imprimimos ao ensino de filosofia em nosso departamento acabou produzindo, ao longo dos anos, extraordinários e felizes resultados. O departamento se tornou um centro reconhecido de estudos de historiografia filosófica.
Dezenas e dezenas de livros, monografias, teses e artigos da melhor qualidade foram produzidos por nossos docentes e pós-graduados. O departamento projetou-se, no país e (por que não dizê-lo, imodestamente?) mesmo no exterior, como uma instituição de ensino e pesquisa de excelente padrão.
Há alguns anos, porém, tenho longamente refletido sobre meu exercício da profissão de professor de filosofia, que sempre me apaixonou. E, como minha caminhada filosófica levou-me a percorrer novos caminhos que não os dantes percorridos, de modo análogo transformou-se significativamente minha concepção do ensino de filosofia.
Devo primeiro, no entanto, esclarecer que continuo rigorosamente fiel ao método estruturalista de leitura das obras filosóficas como um primeiro passo, absolutamente insubstituível, para iniciar o estudo de qualquer sistema ou doutrina.
Em segundo lugar, continuo persuadido de que o ensino da filosofia deve necessariamente reservar um papel importante e fundamental para os cursos de história da filosofia, os cursos monográficos, os seminários e as explicações de texto, como no Departamento de Filosofia da USP tem desde sempre acontecido.
Entretanto, honestamente, acredito que fomos longe demais nessa direção em nosso departamento. Temos dado a nossos estudantes uma formação sobretudo historiográfica.
Mostramo-nos inegavelmente capazes de formar bons historiadores da filosofia. Não teremos, entretanto -não todos, mas a maioria de nós-, contribuído para que a história da filosofia substituísse gradativamente a filosofia em grande parte de nossos cursos?
Não nos teremos deixado dominar por um temor exagerado de que nossos estudantes se deixassem tentar pelo ensaísmo filosofante irresponsável, aconselhando-os, por isso, sempre e sempre a que lessem mais autores, conhecessem mais pontos de vista diferentes, estudassem mais textos, pesquisassem mais linhas de pensamento -adiando sempre, assim, suas elaborações filosóficas pessoais?
Parece-me ter sido isso o que aconteceu. E, se foi assim, nosso excesso de espírito crítico e de rigor metodológico e nossas exageradas exigências de formação historiográfica prévia terão inibido -sinceramente o temo- a criatividade dos nossos estudantes.
É evidente para qualquer um que as críticas que ora faço ao nosso método tradicional e dominante de lidar com o ensino da filosofia no departamento são também de cunho filosófico. Dizem respeito a uma questão controversa nos meios filosóficos: como conceber a preparação de alguém para a prática da filosofia. E, mais do que críticas, elas constituem sobretudo um exercício de autocrítica, porque fui um defensor apaixonado da orientação à qual agora me oponho.
No ano passado, dei à revista "Livro Aberto" (ano 1, nš 5, agosto de 1997) uma entrevista no decorrer da qual, entre muitas outras coisas, desenvolvi boa parte das idéias que acabo de acima expor, dando ênfase maior às observações críticas e autocríticas -a estas últimas, com grande contundência. No entanto, a retórica expressiva de que me servi não permitia a um leitor inteligente e intelectualmente honesto interpretação diferente daquela que este presente texto permite.
Foi, por isso, com enorme surpresa e indignação que tomei conhecimento de um texto assinado, publicado há algumas semanas numa importante revista de nosso país, em que o autor arremete truculentamente contra o Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, faz contra ele acusações ridículas e absurdamente falsas e se exprime de modo grosseiro e insultuoso acerca de minha postura filosófica.
Mas faz ainda algo pior: cita palavras que utilizei na entrevista do ano passado à "Livro Aberto", "montando" uma interpretação estapafúrdia que desloca as frases de seu contexto, acrescentando a elas comentários que pervertem o sentido do texto original. Além disso, serve-se da minha entrevista, que ele deturpa, para denegrir meu departamento, o que para mim é absolutamente intolerável.
Resolvi, no entanto, não responder a tais grosserias. E não vou fazê-lo. Mas me vi, agora, obrigado a aqui expor minhas idéias sobre o ensino de filosofia e os cursos do departamento devido a um artigo publicado na Folha no mês passado, em que se dá novamente de minha entrevista à "Livro Aberto" aquela interpretação absurda a que acabo de referir-me, tomando minhas palavras como se estivessem revelando algum fato lamentável no que concerne ao ensino de filosofia na USP.
O articulista, certamente, não teve acesso ao texto de minha entrevista à "Livro Aberto" e se serviu da fonte espúria que deturpou meu pensamento. Julgo poder depreender isso da maneira pela qual ele cita minhas palavras, reproduzindo a "montagem" com elas feita naquele texto infeliz.
Sou-lhe, no entanto, agradecido. Lendo seu artigo, dei-me conta do quanto pode ser iludida a boa-fé de pessoas que, não conhecendo meus textos e desconhecendo a realidade de meu departamento, são levadas a acreditar em pérfidas difamações, por ter depositado ingênua confiança em quem não a merecia. Resolvi, por esse motivo, escrever este pequeno texto, uma satisfação também aos leitores deste jornal, que me parece oportuna. Mas não pretendo voltar a falar disso. Para mim, o assunto se encerra aqui.

Oswaldo Porchat Pereira, 65, é professor colaborador do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É autor de "Vida Comum e Ceticismo" (Brasiliense, 1993), entre outros livros.



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