São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Que me é permitido esperar?

RUY FAUSTO


O "eu" da pergunta remete, em Kant, a cada um dos homens. Aqui, aos (outrora) eleitores de Lula que ficaram decepcionados


ESSA É A terceira pergunta formulada por Kant no final da "Crítica da Razão Pura", quando sintetiza, em forma interrogativa, as grandes questões filosóficas a que as três críticas tentam responder. Prefiro essa pergunta à fórmula clássica ("que fazer") de um famoso socialista jacobino russo.
Que me é permitido esperar? O "eu" que a pergunta pressupõe remete, em Kant, a cada um dos homens. Aqui, mais modestamente, a cada um dos (outrora) eleitores de Lula que ficaram decepcionados com a política econômica ortodoxa do governo petista ou com as falcatruas em que o governo e o partido se envolveram.
Os integrantes dessa população buscam saídas em opções eleitorais diversas. Já que falei em Kant, examinemos, para cada uma dessas, as razões que poderiam justificá-las e as que poderiam invalidá-las.
Há os que, depois de um momento de hesitação, se decidem a votar, apesar de tudo, em Lula. Razões justificativas. Sobrou gente séria no governo e, provavelmente, também no PT. Há ministérios dirigidos por pessoas honestas e que, aparentemente, não fizeram um mau trabalho (exemplo: Educação e, em certo sentido, Casa Civil). Também houve progresso em certas instituições oficiais ou semi-oficiais (como o BNDES, depois que a primeira direção, sem dúvida desastrosa, foi substituída). Em geral, a corrupção caiu muito depois da saída dos "frères ennemis" Dirceu e Palocci. A acrescentar o perigo de uma volta da direita: não só do PSDB mas também do seu aliado, o PFL.
Entretanto: nada nos leva a crer que o PT e Lula tenham mudado.
Lula faz o possível para neutralizar CPIs e pôr panos quentes em assuntos de muita gravidade. Os elementos mais corruptos continuam com papel importante, direto ou indireto, no partido e no governo. Por meio de acordos eleitorais, o PT já loteou ministérios em proveito de partidos em que predomina a corrupção. Finalmente, mudar a política ortodoxa depende de uma alteração da equipe do Banco Central, e não há sinais seguros de que isso venha a ocorrer.
Outros se dispõem a votar em Heloísa Helena. A sua atitude intransigentemente anticorrupção merece simpatia, se não respeito. A maneira pela qual recusa o apoio de políticos escusos é também positiva, se essa atitude se mantiver.
Entretanto: seu discurso é uma mistura de cristianismo com revolucionarismo, e, por isso mesmo, não pode assegurar uma renovação da esquerda e do país. Além de ter aspectos reacionários -mas isso não é o mais grave-, a fala de Heloísa Helena, e, mais ainda, a de parte do PSOL, é uma espécie de pregação neoleninista ou, no melhor dos casos, ambígua, fundada (embora não só) na idéia errônea de que o PT fracassou pois foi "reformista", e não revolucionário. As ambiguidades do PSOL aparecem, por exemplo, na atitude que teve diante da invasão, inadmissível, do Congresso pelos "camponeses" do MLST.
Outra porção de ex-eleitores de Lula decidiu votar nos tucanos. Sem dúvida, há gente pessoalmente honesta no PSDB, e o partido tem um setor desenvolvimentista.
Só que: primeiro, os mais honestos não são sempre os desenvolvimentistas (e, entre esses últimos, há inimigos radicais de toda esquerda, inclusive, explicitamente, da esquerda democrática, a ver as diatribes da extinta revista "Primeira Leitura").
Mais do que isso: apesar do seu nome e das origens socialistas ou social-democratas de alguns de seus membros, o PSDB se transformou num partido aliado do PFL e que, direta ou indiretamente, está muito vinculado não só ao empresariado industrial mas também aos bancos. Não se trata de demonizar industriais (no limite, nem mesmo os banqueiros); uma virada na política brasileira passa por acordos ou, pelo menos, acertos com uns e outros. Mas um partido cuja base, direta ou indiretamente, está nessas forças não pode realizar as grandes transformações radical-democráticas que o país exige.
Há ainda os que se dispõem a votar em Cristovam Buarque. O candidato tem a vantagem de ser de esquerda, de não ser corrupto e de não fazer pregação revolucionária. Seu candidato a vice, o senador Jefferson Péres, foi um dos únicos parlamentares de esquerda a protestar contra as execuções em Cuba. Porém, além de a sua candidatura não ser muito expressiva, Cristovam não escapa de certo populismo neovarguista e brisolista. Não é bem aquilo de que precisamos.
Esse balanço nos leva a algumas reflexões, as quais serão apresentadas num próximo artigo.

RUY FAUSTO , filósofo, professor emérito da USP, é autor de, entre outras obras, "Marx - Lógica e Política".


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