São Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Chega de faz-de-conta: criança é prioridade

MAURÍCIO CORREIA DE MELLO

Fafá, 11 anos, devia estar brincando de casinha, de roda, de amarelinha. Devia estar terminando o dever de casa, conversando com as amiguinhas. Devia estar vendo nuvens e imaginando nelas um castelo, um rosto, um urso e tudo o que a imaginação infantil é capaz de fazer ver. Devia estar recebendo em sua face corada um beijo de boa noite dos pais. Mas o passado ficou imperfeito.


Quando se diz que Fafá devia estar brincando, mas está sendo explorada sexualmente, a dívida recai sobre todos nós


E o dever-ser se transformou em um tempo verbal lamentável, o futuro inalcançável, o deveria-ser-mas-não-é. Fafá não estava brincando, não estava estudando, não estava recebendo amor de seus pais. Não estava sendo tratada como criança. Fafá estava sendo usada como objeto sexual. Seus pais, em vez de lhe desejarem boa noite, cobravam, no fim do dia, os trocados recebidos pela intimidade infantil raptada.
Dedé tem 13 anos e devia estar fazendo molequices, jogando bola, subindo em árvores. Devia estar na escola, devia estar andando de bicicleta. Mas, assim como Fafá, Dedé também é vítima da imperfeição pretérita. Devia estar, mas não está. Em vez disso, é explorado pelo tráfico de drogas. Faz papelotes de maconha e espera ser promovido a "gerente da boca". Sabe, porém, que a chance maior é a de ser preso ou morrer antes de que isso aconteça. Não tem medo do destino, já que lhe tiraram tudo -inclusive sua dignidade.
Fafá e Dedé são vítimas de duas das piores formas de exploração do trabalho infantil, conforme a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho -a exploração sexual comercial e a utilização de crianças na produção e tráfico de drogas. Infelizmente, existem milhares de Fafás e de Dedés entregues aos próprios destinos, em afronta ao artigo 227 da Constituição Federal, que diz ser dever de todos -da família, da sociedade e do Estado- proteger crianças e adolescentes.
Então, como transformar esse passado imperfeito em um presente mais-que-perfeito? Em primeiro lugar, a óbvia constatação de que somente com investimentos pesados em educação se pode romper o ciclo da pobreza. Infelizmente, também a educação sofre dessa doença gramatical -o futuro que parece inalcançável. Entra governo, sai governo... e a educação continua em segundo plano.
Contudo, quando se fala em dever, se está dizendo que alguém tem uma dívida, uma obrigação. Assim, quando se diz que Fafá devia estar brincando, mas está sendo explorada sexualmente, a dívida recai sobre todos nós.
E vem o questionamento: o que estamos fazendo para cumprir a nossa parte da obrigação? E o que podemos fazer? Podemos nos conscientizar, discutir, defender nossas crianças, cobrar dos governantes, nos articularmos, eleger aqueles comprometidos com a defesa dos direitos das crianças.
Podemos muita coisa, pois a luta pelo reconhecimento da dignidade das crianças e dos adolescentes é permanente. Essa dignidade tem características especiais, decorrentes do processo de desenvolvimento físico e psicológico próprio das crianças e adolescentes.
Muitas vezes já me perguntaram por que crianças não podem ou não devem trabalhar. A resposta é a mais simples possível: criança que trabalha não é feliz. Quem achar o contrário, pode experimentar: ofereça um brinquedo ou uma oportunidade de brincar à criança que trabalha e verá uma transformação radical diante de seus olhos.
A dignidade das crianças e dos adolescentes abrange ainda outros direitos previstos nas normas internacionais, na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Entre eles, destaco o direito à convivência familiar, à educação e ao lazer -direitos negados a Fafá e Dedé. A violência praticada contra eles às vezes começa diante dos nossos olhos, quando toleramos que crianças e adolescentes fiquem nas ruas mendigando ou vendendo todo tipo de produto.
Também acontece de acolhermos em nossas casas crianças e adolescentes que assumem tarefas domésticas em troca apenas de comida e abrigo. Agindo assim, colaboramos para que o ciclo da pobreza se perpetue. Isso para não mencionar que, longe dos olhos, todo tipo de violência pode ser praticada contra essas crianças e adolescentes.
Invoquemos, pois, os direitos mais elementares da criança: receber amor, afeto e viver uma infância feliz. Quando tais direitos são negados, há o risco de vermos reproduzir outro abominável círculo vicioso: o da violência, que afronta o princípio da prioridade absoluta, presente nas normas internacionais, na Constituição Federal e no ECA.
Pergunta-se: quando deixaremos de conjugar o verbo dever no "futuro inalcançável"? Resposta: agora! As crianças não podem mais esperar. Precisamos da certeza de que Fafás e Dedés estão onde devem estar e não onde deveriam estar, mas não estão. Da sala de aula, nos corrijam: o verbo dever não se conjuga no "futuro inalcançável". Dever é para ser cumprido!

Maurício Correia de Mello, 38, procurador-chefe da Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região (Distrito Federal e Tocantins), é vice-coordenador nacional de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente.


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