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São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Tratamento da hepatite crônica C

HOEL SETTE JR.

A hepatite pelo vírus C representa um dos maiores problemas de saúde pública da humanidade. É oito vezes mais comum que a Aids e corresponde à principal e crescente indicação para transplante de fígado em adultos nos países ocidentais. O Ministério da Saúde admite haver mais de 3 milhões de infectados, e estudo no município de São Paulo demonstrou que 1,4% da população paulistana está contaminada, chegando o índice a 2,1% em pessoas com menor nível educacional e 3,8% em pessoas que têm entre 50 e 59 anos. Portanto é incorreto considerar a hepatite C uma doença rara e inofensiva.
É fato que nunca houve no país um "censo macro" para quantificar a real distribuição dessa doença na população, sua tipificação e um mapeamento territorial. Urge o enfrentamento desse problema de forma ampla e abrangente por parte das autoridades. Necessita-se de informações mais precisas, treinamento de recursos humanos e o aprimoramento das ações integrais de saúde para tratar o paciente infectado com o vírus da hepatite C. A disponibilização dos medicamentos é uma questão essencial, mas certamente não é a única.


É dever do Estado garantir a saúde de todos os brasileiros, tratando de forma desigual os desiguais


Discutiu-se, recentemente, nesta Folha, o uso de novos medicamentos para o tratamento da hepatite C, ressaltando-se a inconveniência da sua disponibilização do ponto de vista do "gestor de saúde". Esses novos medicamentos são chamados interferons peguilados e, após aproximadamente oito anos de desenvolvimento, foram aprovados para o tratamento da doença em mais de 60 países, incluindo os EUA, os países da União Européia e o Brasil. A participação ativa do Brasil no programa de desenvolvimento desses novos medicamentos tem sido reconhecida em reuniões médicas internacionais e jornais especializados de enorme respeitabilidade e credibilidade.
Mesmo mais recentemente, com maior conhecimento e experiência, e com o uso de "novas estratégias", nem sequer a metade dos pacientes tratados se curava. Os interferons peguilados não são medicamentos iguais, portanto generalizações não são adequadas, mas é correto afirmar que a possibilidade de cura com seu uso é 20% a 30% superior em pacientes com hepatite crônica C. Esses medicamentos proporcionam a cura para cerca de dois terços dos pacientes tratados. Se houver boa adesão ao tratamento, portadores dos subtipos 2 e 3 do vírus da hepatite C podem alcançar taxas de cura acima de 90%.
A superioridade dos interferons peguilados em relação ao tratamento convencional está comprovada. É importante que o foco seja, agora, direcionado para a sua necessária disponibilização àqueles pacientes com indicação médica de tratamento. Pretende-se aumentar a chance de cura e, com isso, interromper a evolução da doença, reduzindo o número de casos de "falência" do fígado, câncer e necessidade de transplante. Além disso, diminui-se a possibilidade de contaminação de novos indivíduos. Esperar que a doença evolua a ponto de necessitar de transplante implica pelo menos dois graves problemas: falta de captação ativa de órgãos para o transplante e a distribuição dos fígados doados obedecendo uma ordem cronológica, peculiaridade brasileira que condena à morte todo e qualquer paciente que já se encontra em estado grave ao ser incluído na lista.
É lícito que o gestor da saúde pública preocupe-se com a administração de recursos. Ocorre que esse mesmo gestor deve ter também em sua "equação orçamentária" uma reserva de recursos para o tratamento das complicações da hepatite C em pacientes não tratados ou "não curados". Essa preocupação não é uma particularidade brasileira, já que na Espanha, Itália e Alemanha o uso dos interferons peguilados é considerado economicamente viável, pois "protege" das inexoráveis despesas futuras de pacientes não-tratados.
A discussão em torno dos novos tratamentos para a hepatite C trouxe a oportunidade de apresentar a todos uma questão cujo debate já deveria ter sido conduzido há tempo. Trata-se da qualidade e eficácia dos tratamentos convencionais disponíveis. Estes foram aprovados pela Anvisa por critério de similaridade, e não por atividade biológica, o que, a rigor, está de acordo com as leis vigentes. Ocorre que esses tratamentos convencionais determinam baixos índices de cura, aliás índices inferiores aos observados internacionalmente.
O ministro da Saúde, dr. Humberto Costa, assegura de maneira inconteste que o SUS se afirma pelos princípios de universalidade, equidade e integralidade. É, pois, dever do Estado, segundo a Constituição, garantir a saúde de todos os brasileiros, tratando de forma desigual os desiguais e respeitando a integridade de suas demandas. Saliente-se que a doença hepática crônica é a quinta causa de óbito na população brasileira masculina entre 44 e 64 anos de idade e responsável por 44 mil óbitos por ano só no Estado de São Paulo.
Fica claro, então, que os problemas decorrentes da hepatite C são graves e muito mais comuns do que se supunha. Mas, mesmo que fosse de outra forma, mesmo que houvesse poucos pacientes infectados, cada um desses pacientes, individualmente, estaria enfrentando suas angústias e dramas pessoais. O meu compromisso com cada um deles é oferecer a melhor alternativa de tratamento, ou seja, a alternativa que determina a maior chance de cura.
Esse posicionamento seguramente não é afetado pelo número de pacientes existentes no mundo, já que, no ambiente da assistência médica, vê-se apenas um paciente a cada momento e em cada um desses momentos o paciente em questão é a minha única preocupação. Qualquer outro critério seria, comprovadamente, arbitrário e subjetivo e fracassaria ao não reconhecer o valor intrínseco de cada pessoa, um valor que independe de circunstâncias externas.

Hoel Sette Júnior, 61, doutor em gastroenterologia pela Faculdade de Medicina da USP, é hepatologista do Serviço de Transplante e Cirurgia do Fígado do Hospital das Clínicas e diretor clínico da Pró-Fígado.


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