São Paulo, sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Instrumento de cidadania

MARCONI PERILLO

A reforma agrária é uma dessas "eternas prioridades" da agenda nacional, embora seja praticamente unânime a opinião de que ela é o instrumento mais eficaz para promover a justiça social no país, graças ao potencial impacto na geração de renda e distribuição de riqueza. Mas o nosso ordenamento jurídico, herdeiro do direito lusitano, que sobrepõe o papel à posse efetiva e à produção, ensejou o surgimento de um direito agrário amarrado à estrutura cartorial, que tem emperrado avanços neste setor.
Um monumental estoque de terras improdutivas por este país afora espera por aproveitamento, e a reforma agrária é indispensável para consolidar o desenvolvimento nacional. Convicto disso, comuniquei pessoalmente ao ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, que o governo de Goiás investirá R$ 1 para cada R$ 5 aplicados pelo governo federal na reforma agrária no Estado.
Defendo uma reforma agrária corporificada em lei federal, de tal maneira que transponha as limitações de um mandato, e creio ser necessário reconhecer que coube ao presidente Fernando Henrique Cardoso realizar o maior número de assentamentos da nossa história, além da criação de programas como o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e o Banco da Terra.


Estratégica para o país, a reforma agrária exige a atualização e a modernização das leis do setor


Se a necessidade da reforma agrária é consenso, o problema da sua execução persiste, a começar pela grave falta de articulação entre os poderes federal, estaduais e municipais para concretizá-la. Prefeituras, governo do Estado e Incra, sem falar no Poder Judiciário e no Ministério Público, acabam trabalhando juntos apenas de forma episódica e em resposta a momentos de crise.
Institucionalmente, a reforma agrária é prerrogativa do governo federal, e persistem distorções que comprometem a eficiência do programa, como a exclusão dos trabalhadores do próprio município onde se dá o assentamento.
Defendo um modelo próximo ao SUS para a reforma agrária, com leis próprias, em que se definam os princípios e os recursos orçamentários para atingir os objetivos e as metas delineados em planos municipais, estaduais e nacionais, elaborados por períodos governamentais. Por outro lado, estou convencido de que o envolvimento da prefeitura municipal e da própria comunidade -através das suas entidades organizadas- é fundamental para evitar a perturbação de pretensos trabalhadores sem terra, muitos de outras regiões ou Estados, estranhos ao ambiente cultural, econômico e social da região onde se distribuem lotes de terra, o que, com certeza, contribui para a elevada taxa de desistência registrada entre os assentados e a venda -ou sua tentativa- expressiva dos lotes.
Sem desprezo pela contribuição dos Estados e das prefeituras -chamados, hoje, apenas quando ocorrem invasões -, é preciso distribuir em lei os papéis da Federação, dos Estados e dos municípios, de maneira a impedir os assentamentos de se transformarem em favelas rurais ou acampamentos abandonados. Paralelamente, é preciso pôr os assentamentos a salvo dos interesses paroquiais.
A agricultura familiar já responde hoje por 38% do valor bruto da produção agropecuária nacional, 84% dos estabelecimentos rurais e 77% da mão-de-obra do campo. Cabe a ela a produção de 84% da mandioca, 67% do feijão, 58% dos suínos, 54% da bovinocultura de leite, 49% do milho, 46% do trigo, 40% das aves e ovos e 31% do arroz que chegam à mesa dos brasileiros. Esses números deixam claro que há espaço para a sobrevivência econômica dos assentamentos; em última análise, módulos da pequena produção familiar.
A reforma agrária precisa, ainda, da atuação do Incra em uníssono com a mobilização dos governos estaduais e com o acolhimento local facultado às prefeituras.
A inserção econômica e social das famílias assentadas seria facilitada com a ajuda de mecanismos de acompanhamento que levassem em consideração as características de cada lugar. A concessão do lote de terras não finaliza o processo de reforma agrária, representando apenas o começo de uma experiência que passa pela oferta de crédito, assistência técnica, educação, saúde, infra-estrutura -enfim, múltiplos fatores que influem na atividade econômica e na qualidade de vida das pessoas.
Só depois de vencida cada uma dessas etapas é que se chegará à reforma agrária bem-sucedida: aquela que reduz as terras ociosas e incorpora mão-de-obra desempregada ao desenvolvimento nacional. Aquela que ajuda efetivamente a diminuir os desequilíbrios regionais no Brasil.
Estratégica para o país, pela possibilidade de fortalecer a pequena agricultura e oferecer trabalho a milhões de brasileiros e brasileiras hoje marginalizados, a reforma agrária exige a atualização e a modernização das leis do setor, bem como o incentivo à cooperação de Estados e municípios, agentes políticos e administrativos mais próximos do cidadão.

Marconi Perillo, 41, é governador, pelo PSDB, do Estado de Goiás. Foi deputado federal (1994-1998).


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