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TENDÊNCIAS/DEBATES
Não basta louvar
OSCAR NIEMEYER
O projeto que fiz do memorial de Luís Carlos Prestes é, a meu ver, obra tão especial que vale a pena explicá-la um pouco
HOJE, LEMBRANDO os dias de
folga que o fim de ano nos assegura, sinto que alguma coisa
me foi possível realizar.
Não tinha nenhum programa
preestabelecido. O meu aniversário,
uma semana antes, havia sido muito
movimentado, e centenas de amigos
me procuraram para me abraçar na
casa das Canoas. O meu desejo era
evitar tudo isso, e festejar um centenário me parecia pesado demais. Não
que o passado me entristecesse, mas
como me revolta lembrar as velhas
amizades perdidas para sempre...
Como eu esperava, os amigos insistiram e acabei ficando o dia todo por
lá, onde, sem festa nem música, atenderia os que aparecessem. E, passado
tudo isso, foi no meu apartamento de
Ipanema que me deixei ficar, um pouco cansado do que ocorrera, mas surpreso ao constatar que, como se tivesse estado no escritório, havia projetado o memorial de Prestes e lera dois
livros extraordinários.
O primeiro é uma novela do poeta
português Manuel Alegre, "Cão como
Nós", que muito me comoveu. Uma
história simples de um cachorro que
acompanhou o seu narrador por muitos anos e que com ele se entendia tão
bem que só faltava falar. É nessa procura de comunicação, de se compreenderem melhor, que o texto se
desenvolve -em linguagem de qualidade literária tal que não raro pedia a
Vera, minha mulher, para repetir trechos pelo prazer de os ouvir outra vez.
O outro livro, que recebi de presente do meu amigo Fernando Balbi, é
uma coletânea de artigos de José Luís
Fiori ("O Poder Global"), tão atualizados e esclarecedores que todo jovem
brasileiro deveria conhecê-los. Fiori
expõe sua posição progressista sobre
as contradições do mundo globalizado e a onda neoconservadora que
cresce por toda parte, com forte apoio
do governo norte-americano.
Mas não foi só a leitura que me ocupou, mas principalmente o projeto
que fiz do memorial de Luís Carlos
Prestes, a ser construído no Sul do
país. É, a meu ver, obra tão especial
que vale a pena explicá-la um pouco.
Um trabalho que não se baseou, como de costume, num programa construtivo, mas na idéia de criar um elemento principal e único: uma parede
que, cheia de curvas e retas inesperadas, atravessando em diagonal um retângulo de vidro do edifício (de lado a
lado), possa lembrar aos visitantes as
etapas fundamentais da vida desse
grande brasileiro. A fachada simples e
retilínea de vidro do edifício marcaria, com a parede interna tão movimentada, o contraste que a boa arquitetura procura muitas vezes exibir.
Junto da entrada, a parede com textos e imagens começa a mostrar aos
visitantes os inícios da vida de Prestes, quando, oficial do Exército, era
incumbido de acompanhar obras em
construção no Rio Grande do Sul -aí
surge, já com 26 anos, severo como
sempre foi, Prestes a reclamar da maneira pouco correta com que os trabalhos estavam sendo desenvolvidos.
Não recebendo resposta às denúncias que fazia, foi pouco a pouco sentindo que uma solução burocrática a
nada conduzia, mas que os problemas
do país tinham de ser resolvidos por
meio de uma revolução. E a Coluna
Prestes apareceu naturalmente como
a única maneira de enfrentar as questões políticas e sociais existentes.
Passo a passo, os visitantes vão tomando conhecimento dessa marcha
extraordinária, da coragem desse grupo de patriotas a resistir por tanto
tempo às forças repressivas. Logo em
seguida, Prestes é obrigado a se exilar
-na Bolívia e, depois, na Argentina,
seguindo mais tarde para a União Soviética, quando, já sintonizado com o
pensamento de Marx, dá à revolução
um sentido mais amplo e universal.
A parede vai se escurecendo e, num
ambiente mais fechado e sombrio,
aparece o período da prisão, em que
ele permanece nove anos incomunicável. E, como para agravar tanta tristeza, em 1936, sua mulher, Olga Benário, presa e grávida, é enviada criminosamente a um campo de concentração na Alemanha, onde seria morta numa câmara de gás em 1942; sua
filha, Anita, após grande campanha
internacional desencadeada pela mãe
de Prestes, é afinal entregue à avó.
Quanta maldade! Impressionados
com tanta violência, os visitantes param consternados; é a luta política
com seus momentos de glória e horror. A guerra acabara. Vitoriosos, os
soviéticos entram em Berlim. Um clima de otimismo se espalha. No Brasil,
Prestes é anistiado, e o Partido Comunista Brasileiro conquista a legalidade. É a época dos grandes comícios,
da campanha pela Constituinte.
A parede vermelha, que, de acordo
com os acontecimentos, vai mudando
de cor, escurece outra vez. Diante dela, comovidos, os visitantes constatam que o momento de euforia passara. Em 1947, o TSE cancela o registro
do PCB e, a seguir, cassa os mandatos
dos parlamentares comunistas -entre eles, Prestes. Era a reação anticomunista que recomeçava, implacável.
Prestes passa a atuar na clandestinidade. Com o golpe militar de 1964,
seus direitos políticos são cassados.
A história caminha para o fim.
Atentos, os visitantes seguem o relato
emocionante. Começa um novo exílio, que se estende até 1979; de volta,
apóia as Diretas-Já, solidarizando-se
com a candidatura de Tancredo Neves. O tempo passa e, altivo e corajoso
como sempre, vem a morrer em 1990;
postumamente, Prestes é anistiado
pelo Exército e promovido a coronel.
Como arquiteto, vejo, satisfeito,
que meu projeto vai contribuir para
manter viva a memória de Luís Carlos
Prestes, um brasileiro que lutou em
favor de seu povo, contra a miséria e a
desigualdade social que, infelizmente, ainda persistem em nosso país.
Reli este texto e sinto que não basta
louvar o passado. O importante é continuar essa luta por um mundo melhor que o império de Bush procura
em vão obstruir.
OSCAR NIEMEYER, 100, arquiteto, é um dos criadores de
Brasília (DF). Tem obras edificadas na Alemanha, Argélia,
EUA, França, Israel, Itália e Portugal, entre outros países.
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