São Paulo, Quinta-feira, 11 de Fevereiro de 1999
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A aposentadoria de Sebastiãozinho


O objetivo é impor a previdência privada, criando um mercado que variará entre R$ 250 bilhões e R$ 300 bilhões


JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

A maioria das reformas constitucionais nem sequer foi discutida no Congresso. A Previdência é um exemplo. Em 96, a comissão especial foi dissolvida antes de debater o mérito, e a matéria foi ao plenário, em que as discussões são sempre insuficientes e conturbadas. Após um passeio pelo Senado, onde a proposta foi totalmente modificada pelo substitutivo do senador Beni Veras, voltou às comissões da Câmara, por ser considerada matéria nova.
Na Comissão de Constituição e Justiça, discutiu-se apenas sua constitucionalidade; na especial, os deputados da base governista fizeram, com o presidente da comissão, manobras espúrias e impediram novamente a discussão de mérito. No plenário, a Câmara acabou aprovando, sem a discussão e a legitimidade necessárias, uma matéria do interesse de 150 milhões de brasileiros, fora os já mortos e os que vão nascer.
A proposta do governo, aprovada dessa forma, extingue a aposentadoria proporcional; impõe a aposentadoria por tempo de contribuição e não por tempo de serviço, de tal modo que muitos brasileiros nunca chegarão a se aposentar, principalmente os trabalhadores menos qualificados e os informais; extingue a aposentadoria especial do professor universitário e a integralidade da pensão por morte concedida aos dependentes; estabelece a contribuição previdenciária dos aposentados com mais de 65 anos; restringe o salário-família e proíbe o servidor de continuar trabalhando em cargo público após a aposentadoria. Se somarmos a isso os direitos dos trabalhadores já retirados por medidas provisórias (não poucos), pode-se ter idéia do desmonte de cidadania que está ocorrendo.
Houve, porém, uma vitória dos trabalhadores quando, na Câmara, se derrubou a idade mínima (60 anos para homens, 55 para mulheres), acrescida que era ao tempo de contribuição. Até os deputados da empedernida base governista entenderam que a exigência de ambas as condições prejudicaria perversamente os que começam a trabalhar mais cedo, que são os mais pobres.
Vamos a um exemplo concreto: Sebastiãozinho, filho de um funcionário braçal que colabora comigo, começou a trabalhar com 15 anos. Mesmo que comprove sua contribuição nos seus diferentes "empregos" de forma continuada, ele se aposentará aos 60, com 45 anos de trabalho. Meu filho André, arquiteto, começou aos 25 anos; depois de formado, se aposentará também aos 60, porém com 35 anos de trabalho e contribuição, dez anos a menos do que o Sebastiãozinho. Não é justo.
Por isso, fiz o destaque para votação em separado; ganhamos. Derrubamos a idade mínima. Ficou a exigência de 35 anos de contribuição: tanto o André como o Sebastiãozinho podiam se aposentar com o mesmo tempo de trabalho e contribuição. Qual não foi minha surpresa quando a idade mínima reapareceu na redação final, não com 60 anos, mas com 65 -cinco anos a mais.
Retirado o item da idade mínima sem a mudança do "caput" do artigo, o tempo de contribuição se somou ao item seguinte, que era destinado àqueles que não contribuíram para a Previdência. Mas a simples retirada, sem adaptação redacional, fez aumentar e não subtrair a idade mínima. Ora, a redação final é feita exatamente para dar ao texto da lei a clareza que exprime a votação e a vontade do plenário. No caso, serviu para fazer o inverso: contrariar desonestamente o que foi votado e fazer valer, na redação, a vontade do governo, pelas mãos do redator.
A história é tão absurda que uso algumas linhas para colocar o texto da lei (art. 201, parágrafo 7º) como ficou na redação final aprovada e pedir ao leitor que o interprete: "É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: a) 35 anos de contribuição, se homem, e 30 anos de contribuição, se mulher; b) 65 anos de idade, se homem, e 60 anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, neste incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal". Minha proposta na sessão de 25/11, na qual se discutia a redação final, era colocar no "caput" do artigo, em vez de "as seguintes condições", "uma das seguintes condições", significando que seria uma ou outra, nunca as duas. Nada mais óbvio.
Mesmo com o apoio da oposição e, certamente, com o entendimento de todos sobre o absurdo da redação, o texto foi aprovado -com mais facilidade, por maioria simples. O Sebastiãozinho não trabalhará 45, mas 50 anos. Mas quem se importa com ele?
É um enorme escárnio, que só é feito porque o objetivo, na realidade, é impor a previdência privada, criando um mercado que, no cálculo dos especialistas, variará entre R$ 250 bilhões e R$ 300 bilhões. Sem contar a transferência de recursos públicos que ocorrerá na segunda fase da reforma e que, de acordo com cálculos do Banco Mundial, do Ipea e da FGV, não será menor do que R$ 1,4 trilhão. Perderam o pudor!
Cabe um conselho, que Sêneca (4 a.C.-64 d.C.) dava a Lucílio em longa carta sobre a virtude do pudor, usando uma frase de Epicuro: "Devemos ter sempre diante dos olhos um homem honesto, a quem estimamos e admiramos, e viver e atuar como se ele estivesse nos observando". Não esqueçamos: Sêneca, conselheiro de Nero, foi constrangido pelo imperador a suicidar-se.
Passaram-se 2.000 anos, mas parece que manter o pudor continua sendo um suicídio (político); perder a capacidade de corar, um sinal de assunção do "politicamente correto".
José Aristodemo Pinotti, 64, é professor titular de ginecologia e obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi deputado federal, secretário da Saúde e da Educação do Estado de São Paulo e reitor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).


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