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Shakespeare inventado
OTAVIO FRIAS FILHO
Shakespeare deve ser o autor que
mais histórias forneceu ao cinema. O
filme que estréia amanhã, porém, não
é baseado em alguma obra sua, mas
nele próprio. Prevalecendo-se do muito que não se sabe sobre a biografia do
bardo, "Shakespeare Apaixonado"
forja um episódio romântico que poderia -ou não- ter acontecido.
Um dos roteiristas, o dramaturgo
inglês Tom Stoppard, criou tempos
atrás uma comédia interessante em
que dois personagens secundários do
"Hamlet" -Rosencrantz e Guildernstern- são levados à condição
de protagonistas, enquanto a tragédia
do príncipe existencialista se desenrola às suas costas, como pano de fundo.
O resultado desta vez foi mais banal.
Suposta paixão frustrada do poeta por
uma donzela da corte converte-se, na
oficina mental de seu gênio, em "Romeu e Julieta". "Shakespeare Apaixonado" é uma comédia comercial,
quase divertida, com ótima ambientação de época -e só. Traz à baila, no
entanto, o mistério da vida sob o mito.
Os especialistas descartaram a hipótese, que prosperou até poucas décadas, de que Shakespeare não fosse
Shakespeare, ou seja, de que sua obra
fora escrita por outrem. Não existe retrato confiável do poeta, mas é possível rastrear e comparar as sucessivas
edições de sua obra em vida. Sabe-se
muito e pouco sobre Shakespeare.
Além de autor e ator, ele foi um produtor preocupadíssimo com o que
hoje chamaríamos de viabilidade comercial de suas peças. Muito da vulgaridade e das palhaçadas que recheiam
suas tragédias (e que tanto incomodaram Voltaire, um de seus raros detratores) tinham por objetivo atrair uma
platéia ávida por diversão fácil.
Ao contrário do estereótipo do "artista genial", Shakespeare foi um homem "conservador", amante da ordem e dos bons costumes, afeito às
convenções sociais. É o que transparece tanto nas peças, que sempre terminam com o restabelecimento da autoridade, como nos traços biográficos,
ainda que rarefeitos, que chegaram
até nós.
Nem a moda dos "estudos culturais", que questiona a supremacia da
cultura branca, masculina e européia
que forma o cânone ocidental, atreve-se a deslocar Shakespeare do pódium que ele ocupa. Para Harold
Bloom, que acaba de lançar um livro
sobre o poeta, Shakespeare simplesmente inventou nossa maneira de
sentir.
Perguntado sobre se isso não seria
equiparar Shakespeare a Deus, Bloom
disse que sim. O que não impede que
a reputação de Shakespeare tenha sido
"construída" por fatores aleatórios.
Ele escreveu muito (37 peças), mesclou gêneros, usou eras e países para
todos os gostos como cenário; Christopher Marlowe, seu rival, morreu aos
29.
Sua obra foi bem preservada e se beneficiou da enorme difusão da língua,
fruto de três séculos sucessivos de
predomínio inglês e americano. Plástica e dinâmica, ela encontrou seu habitat ideal no cinema. Houve, em resumo, outros Shakespeares que não
frutificaram ou dos quais nunca chegaremos a ter notícia.
Filme: Shakespeare Apaixonado
Produção: EUA/Inglaterra, 1998
Direção: John Madden
Com: Joseph Fiennes e Gwyneth Paltrow
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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