São Paulo, Quinta-feira, 11 de Março de 1999
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Shakespeare inventado

OTAVIO FRIAS FILHO

Shakespeare deve ser o autor que mais histórias forneceu ao cinema. O filme que estréia amanhã, porém, não é baseado em alguma obra sua, mas nele próprio. Prevalecendo-se do muito que não se sabe sobre a biografia do bardo, "Shakespeare Apaixonado" forja um episódio romântico que poderia -ou não- ter acontecido.
Um dos roteiristas, o dramaturgo inglês Tom Stoppard, criou tempos atrás uma comédia interessante em que dois personagens secundários do "Hamlet" -Rosencrantz e Guildernstern- são levados à condição de protagonistas, enquanto a tragédia do príncipe existencialista se desenrola às suas costas, como pano de fundo.
O resultado desta vez foi mais banal. Suposta paixão frustrada do poeta por uma donzela da corte converte-se, na oficina mental de seu gênio, em "Romeu e Julieta". "Shakespeare Apaixonado" é uma comédia comercial, quase divertida, com ótima ambientação de época -e só. Traz à baila, no entanto, o mistério da vida sob o mito.
Os especialistas descartaram a hipótese, que prosperou até poucas décadas, de que Shakespeare não fosse Shakespeare, ou seja, de que sua obra fora escrita por outrem. Não existe retrato confiável do poeta, mas é possível rastrear e comparar as sucessivas edições de sua obra em vida. Sabe-se muito e pouco sobre Shakespeare.
Além de autor e ator, ele foi um produtor preocupadíssimo com o que hoje chamaríamos de viabilidade comercial de suas peças. Muito da vulgaridade e das palhaçadas que recheiam suas tragédias (e que tanto incomodaram Voltaire, um de seus raros detratores) tinham por objetivo atrair uma platéia ávida por diversão fácil.
Ao contrário do estereótipo do "artista genial", Shakespeare foi um homem "conservador", amante da ordem e dos bons costumes, afeito às convenções sociais. É o que transparece tanto nas peças, que sempre terminam com o restabelecimento da autoridade, como nos traços biográficos, ainda que rarefeitos, que chegaram até nós.
Nem a moda dos "estudos culturais", que questiona a supremacia da cultura branca, masculina e européia que forma o cânone ocidental, atreve-se a deslocar Shakespeare do pódium que ele ocupa. Para Harold Bloom, que acaba de lançar um livro sobre o poeta, Shakespeare simplesmente inventou nossa maneira de sentir.
Perguntado sobre se isso não seria equiparar Shakespeare a Deus, Bloom disse que sim. O que não impede que a reputação de Shakespeare tenha sido "construída" por fatores aleatórios. Ele escreveu muito (37 peças), mesclou gêneros, usou eras e países para todos os gostos como cenário; Christopher Marlowe, seu rival, morreu aos 29.
Sua obra foi bem preservada e se beneficiou da enorme difusão da língua, fruto de três séculos sucessivos de predomínio inglês e americano. Plástica e dinâmica, ela encontrou seu habitat ideal no cinema. Houve, em resumo, outros Shakespeares que não frutificaram ou dos quais nunca chegaremos a ter notícia.

Filme: Shakespeare Apaixonado
Produção: EUA/Inglaterra, 1998
Direção: John Madden
Com: Joseph Fiennes e Gwyneth Paltrow



Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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