UOL




São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Oito mitos da política macroeconômica

FERNANDO CARDIM DE CARVALHO

O presidente Lula teria declarado, alguns dias atrás, que bravatas são próprias da retórica de políticos de oposição. Governos, porém, teriam de ser responsáveis e, por isso, sua política econômica estaria reproduzindo todos os aspectos essenciais da política do governo Fernando Henrique. Com este (em muitos aspectos) surpreendente discurso, o presidente estaria propagando um dos muitos mitos que têm impedido o debate sério das alternativas de política econômica. Desses mitos, oito chamam a atenção pela sua recorrência:
1. Só existe uma política macroeconômica possível, a que está sendo implementada.
Alimenta-se este mito descrevendo a política empregada pelos seus objetivos, e não pelos seus instrumentos. Ora, quem seria a favor da inflação elevada ou da irresponsabilidade fiscal? A crítica da política econômica se volta para os instrumentos usados, não para os objetivos. Políticas fiscais e monetárias contracionistas impedem o crescimento, aumentam o desemprego e não diminuem a vulnerabilidade externa, raiz dos problemas atuais da economia, inclusive a pressão inflacionária de 2002. São outros instrumentos que devem ser buscados;
2. A estratégia adotada só não funcionou por causa externa.
A política econômica de Fernando Henrique, que prossegue, radicalizada, no governo Lula, é correta. Os resultados medíocres obtidos -estagnação, desemprego e, ao final, até a ressurreição da inflação- deveram-se às turbulências externas. Esse argumento é uma confissão prévia de falência. A economia internacional é turbulenta pelo menos desde o fim dos anos 60 e permanecerá assim. Se é assim, por que persistir em políticas cujo sucesso pode ser desfeito pela instabilidade da economia internacional? A questão não é se o mundo é turbulento, mas por que não diminuímos nossa exposição a esse risco;
3. Só os radicais se opõem à política atual.
Atribuir a crítica da política econômica a "radicais" serve para desqualificar a crítica, sugerindo amadorismo ou irresponsabilidade. Na verdade, economistas de variadas origens têm apontado as insuficiências da estratégia de política macroeconômica de Fernando Henrique e Lula, muitos dos quais nem sequer são membros do PT, quanto mais ligados a grupos "radicais" desse partido. O objeto da crítica é a eficiência da política adotada, seus custos e benefícios. O resto é retórica;
4. Propostas alternativas implicam ruptura.
Este mito desdobra o anterior, tentando reduzir a reflexão sobre políticas macroeconômicas à dicotomia manutenção/destruição. Desse modo, sugere-se que só há uma possível trajetória diversa da presente, resumida na frase "ser contra tudo o que está ai". A política de dívida pública só pode ser "pagar o que for necessário" ou "default"; a política de juros ou mantém juros extorsivos ou implica complacência com a inflação descontrolada e explosiva. Não há nuances, não há o que aprender da experiência de outros países (que aplicam outras políticas), ou mesmo da experiência brasileira em outras épocas;
5. Propostas alternativas envolvem custos elevados.


Como muitas vezes no passado recente, a retomada do crescimento está "logo ali", na eternidade


O mito não é a afirmação, mas a assertiva que ela deixa implícita -a de que a política presente não envolve custos (ou a suposição, sem provas, de que qualquer outra envolveria custos maiores, o que é, naturalmente, uma questão a ser decidida pelo exame empírico de custos e benefícios). Toda estratégia tem custos. A adotada no presente, por exemplo, tem custado estagnação, desemprego e vulnerabilidade a quaisquer choques provindos do exterior;
6. O jogo está sendo virado.
Neste início de ano, capitais externos estão fluindo para o país, o real se valoriza, o risco Brasil sai das alturas a que chegou em 2002. O governo chama a atenção para o aumento da "qualidade" do ajuste fiscal, com o superávit primário resultando do corte de gastos em vez de aumento de receitas. Contudo o custo desse "ajuste" é o sacrifício de despesas de investimento público e de gastos sociais. Mesmo o ganho mais significativo, obtido ainda no governo anterior -a recuperação dos saldos comerciais-, tem muito a ver com a contração de importações causada pela estagnação da economia.
Além disso, a entrada de capitais se resume largamente aos capitais de curto prazo, que abandonarão a economia ao primeiro sinal de problemas, como noticia a imprensa. Desde 1994 houve inúmeros episódios de "falso renascimento", sempre abortados pela crise externa seguinte, que invariavelmente nos atingia em cheio, dada nossa vulnerabilidade externa (ainda intacta). Como muitas vezes no passado recente, a retomada do crescimento está "logo ali", na eternidade;
7. O que importa são as políticas de desenvolvimento e sociais.
Este é o mito de que, embora a política macroeconômica gere desemprego e estagnação, as políticas de desenvolvimento serão suficientes para compensar a influência negativa. Como isso poderá ser alcançado em uma economia de demandas pública e privada contraídas pela política econômica, em que a vulnerabilidade a movimentos adversos de capitais manterá sempre uma taxa de juros em patamares elevados, em que a modernização dos mercados de capitais será, pela mesmo razão, fatalmente impedida, permanece um mistério;
8. Quando a economia voltar ao normal, muda-se.
Este é o mito final, alimentado, ao que parece, pelas lideranças políticas do governo e as que lhe são próximas. Para estes, a ortodoxia é provisória, para ganhar a confiança dos mercados, acalmar a situação e, finalmente, no futuro, mostrar o "estilo PT" de governar. Esta visão supõe que os "mercados" são tolos e se satisfazem com medidas a seu favor no curto prazo.
Credibilidade não se ganha com retórica, nem mesmo com medidas concretas que possam, contudo, ser revertidas adiante. Credibilidade ganha-se quando "as mãos são atadas" e o governo perde a capacidade de promover, no futuro, mudanças de rotas. Não basta ser "market-friendly", é preciso que isso se cristalize em regras que garantam que esse comportamento não será revertido. Assim, os que acham que o problema é emergencial, causado pela "herança maldita" que alegam ter recebido do governo anterior, que o governo mostrará sua verdadeira face mais tarde exibem um desconhecimento agudo do modo pelo qual governos e mercados interagem na atualidade.

Fernando J. Cardim de Carvalho é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Jorge Bornhausen: Cem dias de neoconservadorismo

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.