São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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A trajetória (e a tragédia) do PT

RICARDO ANTUNES


O mais exitoso partido de esquerda das últimas décadas assemelha-se hoje ao "New Labour" da velha Inglaterra

O PT parece completar seu ciclo e chegar à maioridade política: nascido no seio das lutas sociais, sindicais e da esquerda do final dos anos 70, o jovem partido surgia, então, sob o signo da recusa tanto do "socialismo real", quanto da social-democracia, sem migrar para o capitalismo. Sua vitalidade decorria do forte vínculo com as forças sociais do trabalho. A década de 80, que tantos consideram como a "década perdida", para o mundo do trabalho foi um período de criação e avanço. Bastaria lembrar que ali floresceram, além do PT, da CUT e do MST, uma pletora de movimentos sociais e sindicais, dos campos e das cidades, que irrompiam pela base, questionando nossa trajetória quase prussiana, autocrática, cujos estratos "de cima" expressavam um universo burguês ao mesmo tempo agressivo e medroso, elitista e insensível.
Nos anos 90, a década da desertificação neoliberal, uma tormenta se abateu sobre o nosso país. Tivemos privatização acelerada, informalidade descompensada, desindustrialização avançada e financeirização desmesurada. Tudo conforme o figurino global. Se Collor foi um bonapartista aventureiro, fonte inesgotável de irracionalidade, com FHC e sua racionalidade acentuada o país descarrilou nos trilhos do social-liberalismo, eufemismo designado aos que praticam o neoliberalismo.
O PT sofreu essa tempestade, oscilando entre a resistência ao desmonte e a assunção da moderação. Lutava contra o receituário e a pragmática neoliberais, mas aumentava sua sujeição aos calendários eleitorais, atuando cada vez mais no leito da institucionalidade. De partido contra a ordem, foi se metamorfoseando em partida dentro da ordem. As derrotas eleitorais de 94 e 98 intensificaram seu transformismo, enquanto o país também se modificava. No apogeu da fase da financeirização do capital-dinheiro, do avanço tecno-científico, do mundo digital e quase espectral, onde tempo e espaço se convulsionam, o Brasil vivenciava uma mutação do trabalho que alterava sua polissemia, da qual a informalidade, precarização e desemprego são expressões. Ingressamos então na simbiose entre a era da informalização e a época da informatização.
Quando, finalmente, Lula venceu as eleições, o país estava de cabeça para baixo. Ao contrário da potência criadora das lutas sociais dos anos 80, o cenário era de estancamento em meio a tanta destruição. Sua eleição foi, por isso, uma vitória política tardia. Nem o PT, nem o país eram mais os mesmos. O segundo estava desertificado enquanto o primeiro havia se desvertebrado.
Por isso, a política que o governo do PT vem implementando, desde sua primeira hora, é em parte expressão de seu transformismo e sua conseqüente adequação à ordem. Mas a intensidade da subordinação ao financismo, ao ideário e à pragmática neoliberais deixaram estupefatos até seus mais ásperos críticos. Enquanto isso o tucanato e o PFL transitaram da surpresa inicial, ao constatarem que o PT no poder é o antípoda do PT na oposição, para um segundo e atual momento, de escárnio e crucificação. O episódio Waldomiro, era só o que faltava, fazendo até a lendária revista britânica "The Economist" lembrar que o halo do governo do PT estava empanado. ("The Economist", 21/2/04).
Encantado com o mundo palaciano, agindo como paladino do neoliberalismo, embalado pelas músicas de Zeca Pagodinho, adulado pela manipulação "dudiana", o governo do PT mantém uma política econômica que amplia o desemprego e a informalidade e estanca a produção. Sua postura em relação aos transgênicos curvou-se às transnacionais e sua ação contra a Previdência Pública foi a visceral negação de todo o seu passado, gerando catarse junto aos novos operadores dos fundos de previdência, que vislumbram a feliz confluência do mundo financeiro com o sindicalismo de negócios.
Mas num ponto o governo Lula mostrou-se mais competente que o de FHC: pela primeira vez na história recente do país, os trabalhadores privados foram jogados contra os trabalhadores públicos. Se não fosse trágico, poder-se-ia dizer que o partido que nasceu (com o perdão da palavra) na luta de classes converteu-se no partido que incentiva a luta intraclasse. Claro que, para tanto, foi necessário repetir a história anterior, dos "processos e depurações", que levou o PT dominante a expulsar a coerência para preservar a subserviência. O mais exitoso partido de esquerda das últimas décadas, que tantas esperanças provocou no Brasil e em tantas outras partes do mundo, assemelha-se hoje ao "New Labour" da velha Inglaterra.
Francisco de Oliveira recorreu ao ornitorrinco para retratar a tragédia brasileira. Oriundo da Austrália, o monstrengo tem bico de pato, mescla de réptil com mamífero. Tão estranho e feioso é o bicho, que a pena sarcástica de Melville (vale lembrar que é de sua safra a máxima sobre o tucano: bela plumagem e carne ruim!) nos lembra que, quando um ornitorrinco empalhado apareceu pela primeira vez na Inglaterra, os estudiosos das ciências naturais não conseguiam acreditar que aquele animal existia na realidade, afirmando que seu bico era artificial. A comparação é quase inevitável: seria, então, o ornitorrinco o símile petista do tucano?

Ricardo Antunes, 49, é professor titular de sociologia do trabalho do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. É autor de "Adeus ao Trabalho?", entre outras obras.


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