São Paulo, domingo, 11 de junho de 2000


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Qual universidade, cara pálida?


É preciso que sejamos mais sutis na discussão. Que se evite cair na equação "universidade brasileira = universidade pública"


JORGE BARCELLOS

O Mais! de domingo passado reuniu artigos dedicados à crise na universidade. Os artigos revelam que, para professores que construíram sua vida no interior dessa instituição, o fim trágico da universidade brasileira traz o amargo sabor da decepção. A qualidade dos textos é excepcional e o debate, urgente. Mas a primeira leitura provocou-me a sensação de exclusão. Por quê?
Os artigos dão a impressão de que a universidade pública é "a única universidade", como se não houvesse possibilidade de pensamento fora e após o suposto "final" da universidade pública brasileira -que ainda não aconteceu nem desejamos. É a forma absoluta com que os autores falam de universidade brasileira que me incomoda: entendem-na como a universidade pública brasileira. Cometem um equívoco, um "ato falho", na definição de Freud. Por trás desse equívoco esconde-se uma forma injusta de perceber a universidade particular, um estereótipo: não existe pensamento crítico fora dos limites da universidade pública. Para seus autores, a universidade particular não existe.
Lembro-me de que, quando aluno da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), eram comuns referências pejorativas à universidade. Ridicularizavam-se a condição de seus mestres, as formas de estudo e de trabalho. Nenhum crédito era dado a elas, lugar de mercenários, estudantes fracos, canudos comprados, verdadeiro balcão de negócios de nível superior.
Recentemente fui empregado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Sul do país. Obtive o cargo após um concurso de títulos e provas, exatamente como na universidade pública. Leciono 12 horas semanais e recebo brutos R$ 1.265.
Ministrei anos atrás a mesma carga horária, como professor contratado da UFRGS, recebendo R$ 180. Descobri uma universidade séria, com alunos que em nada se diferenciam dos da universidade pública.
Estudei sete anos na universidade pública (quatro de graduação e três de pós-graduação), sem contar os 11 anos passados no sistema público escolar. Acreditei por muito tempo numa "dívida" com o sistema público brasileiro.
Confesso que tentei pagá-la: realizei durante dez anos concursos públicos para ser contratado. Primeiro constatei que há concursos honestos. Algumas vezes ficava em segundo lugar, mas não havia vaga para mim. Depois deparei com aqueles em que tudo parece "arranjado". Vi certa vez num quadro de resultados que todos os candidatos haviam obtido nota 3 nas provas, exceto um já contratado pelo departamento, que precisava "se efetivar". Era o único com a nota máxima. Nunca reclamei.
Continuei batalhando, silenciosamente, por meu lugar. Curioso. Minha trajetória é a de uma pessoa humilde e pobre que, graças ao ensino público brasileiro (desde o primário), concluiu um curso de pós-graduação. Que durante dez anos tenta "sem sorte" ingressar como professor numa universidade federal para pagar uma "dívida moral" e que em apenas um ano obteve vaga para lecionar numa universidade particular. Qual é o sistema justo nisso tudo?
Sou levado a "desistir" da universidade pública, como afirma um dos articulistas. Contudo defendo que as universidades privadas têm um importante papel a realizar no momento da crise da universidade pública.
Parceiros constantes em atividades conjuntas, não são o "vilão" da história. São um espaço de sobrevivência até a tempestade passar.
Nesse debate, uma ausência: a voz dos estudantes. Há sempre a opinião de professores que vivem um momento de desencanto com a carreira, com a universidade e com seus projetos de trabalho. E com que sonham os estudantes? Com uma universidade pública e gratuita sim, mas também com uma oportunidade de entrar na carreira universitária. Mas o aumento no número de aposentadorias não implicou a realização de concursos na mesma proporção para as novas gerações.
É preciso que sejamos mais sutis nessa discussão. Que se evite cair na equação "universidade brasileira = universidade pública", como bem apontou Bresser Pereira. Que se assuma uma postura de defesa da universidade pública que envolva os profissionais das universidades privadas. Que se considere um aluno saído de uma boa universidade particular tão competente quanto o egresso de uma boa universidade pública. Que se dê voz aos alunos, ainda não suficientemente ouvidos. Que os oriundos de uma universidade pública não se envergonhem de buscar construir seu espaço numa universidade privada e, finalmente, se for o caso, que os professores de uma universidade pública aceitem a dignidade de trabalhar numa universidade particular como numa universidade qualquer.


Jorge Barcellos, 35, historiador e mestre em educação pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), é professor-assistente de políticas educacionais da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos).



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