São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Por fora bela viola

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

O GOVERNO FEDERAL acaba de anunciar um programa de grande porte para salvar a agroindústria da soja. O plano é adicionar óleos vegetais in natura ao diesel, submetendo a mistura a um processo de hidrogenação. Com isso, seriam evitados os custos da transesterificação, processamento necessário quando o óleo vegetal é adicionado ao diesel sem posterior hidrogenação. Dessa forma, evitam-se os custos operacionais e de investimentos para equipamentos de transesterificação. Parece, portanto, uma excelente idéia. Mas não é. Vejamos por quê.


Se a intenção é inserir biocombustíveis na matriz energética, devemos optar por óleos que tenham maior produtividade por hectare


A cultura da soja para produção de óleo se caracteriza por uma produtividade por unidade de área cultivada extremamente baixa, entre 10 e 12 vezes menor que a da cana-de-açúcar para o álcool, por exemplo.
Como conseqüência dessa baixa produtividade, a logística operacional interna, isto é, colheita, plantio, etc., consome uma quantidade de combustível muito maior que no caso da cana-de-açúcar, uma vez que a área plantada para a mesma energia produzida é 10 a 12 vezes maior.
Essa é apenas uma das razões para a baixa produtividade da soja. Além do mais, no âmbito das tecnologias tradicionais, a produção de soja já percorreu prolongado aprendizado, havendo provavelmente pouco espaço para aumento de produtividade.
Enquanto para a produção de 8 unidades de energia na forma de álcool de cana-de-açúcar consome-se apenas 1 unidade de combustível, para o óleo vegetal proveniente da soja este fator seria, segundo os cálculos mais benevolentes, de 1,43 para 1.
Se adicionarmos a logística externa e custos energéticos da hidrogenação, seria dispendida quase tanta energia para produzir e distribuir o biodiesel de soja quanto àquela que dele se poderia aproveitar. Portanto, não haveria contribuição significativa, fosse para a redução do efeito estufa, fosse para a economia de combustíveis.
E o programa só se sustentaria enquanto subsidiado, não havendo esperança de tornar-se auto-sustentável econômica e energeticamente. O único benefício seria uma melhoria do ambiente em grandes centros urbanos, devido à redução de gases poluentes. Por outro lado, se a meta de inserção de óleo de soja a 10% no diesel for alcançada, o subsídio anual poderá chegar a cerca de R$ 4 bilhões.
Com o eminente declínio da produção do petróleo, conseqüente elevação de seus preços e concomitante crescimento da demanda de combustíveis líquidos, o recurso à biomassa energética deverá crescer inexoravelmente. Com isso, aumentará o valor econômico e estratégico de terras para o plantio de bioenergéticos.
A produtividade por unidade de área será, portanto, o fator dominante em qualquer avaliação de eventuais opções no campo de biocombustíveis.
Como exemplo, façamos uma comparação inusitada, mas altamente pertinente, entre três das mais importantes áreas do agronegócio nacional.
A contribuição ao PIB brasileiro da produção de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo está entre US$ 10 bilhões e R$ 11 bilhões, incluindo-se contribuições indiretas e induzidas (efeito renda). Essa produção ocupa 3 milhões de hectares. A pecuária nacional, com cerca de 200 milhões de hectares, e a soja, com 20 milhões, representam juntas uma contribuição ao PIB brasileiro aproximadamente igual àquela da cana, mas retendo uma área 75 vezes maior.
Os EUA têm um extenso programa de produção de álcool a partir de milho que também é bastante ineficiente e, portanto, altamente subsidiado.
E a razão é a mesma verificada no caso do óleo de soja: a baixa produtividade por hectare. E para proteger essa indústria, a importação do álcool brasileiro é altamente taxada. Essa distorção vem sendo denunciada em todas as instâncias da sociedade americana e também pelo governo brasileiro. Mas a batalha será árdua, pois o lobby do setor é poderoso. Estamos prestes a instalar uma perversão econômica idêntica, que no futuro será irremovível.
Se a intenção é promover a inserção de biocombustíveis na matriz energética nacional, devemos dirigir nossos esforços para óleos que tenham maior produtividade por hectare e que ainda não foram tecnologicamente elaborados, como o dendê e a mamona.
Se a intenção é simplesmente salvar os empresários da soja, a solução seria o governo auxiliar a conversão para a produção de álcool (o que pode ser feito em dois ou três anos), uma vez que esse energético tem demanda assegurada e elevada competitividade no mercado internacional.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE , 74, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.


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