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TENDÊNCIAS/DEBATES
É preciso haver maior controle oficial sobre a base de currículos da Plataforma Lattes?
NÃO
A cultura do acesso aberto
ROGERIO MENEGHINI
EM 1974 , durante meu pós-doutorado no departamento de biologia da Universidade Stanford,
reunimo-nos Paul Ehrlich, famoso
cientista e então chefe do departamento, um escrivão e a secretária para, com dois colegas americanos, assistirmos incrédulos a um cerimonial
inusitado pelo qual eu paguei US$ 50
de minha bolsa de US$ 300 mensais.
O escrivão ali estava para comprovar que a assinatura de Ehrlich no documento era autêntica. Este confirmava que Francisco Lara, meu orientador de doutorado na USP e doutor
por Stanford, trabalhara como auxiliar de ensino naquele departamento.
Lara tinha recorrido ao consulado
brasileiro para registrar contagem de
tempo dessa atividade para a aposentadoria, mal sabendo que os diplomatas brasileiros também são cartoriais
e fazem exigências compatíveis. O documento tinha que ter carimbo de reconhecimento oficial, mesmo o notário não sendo reconhecido no Brasil.
Cinco anos depois, veio o Ministério da Desburocratização, encabeçado por Hélio Beltrão, que, como se antevia, mal conseguiu mexer no sistema cartorial brasileiro.
O setor acadêmico, como obriga
sua missão, deu um passo à frente do
cartorialismo nacional com o CNPq,
criando em 1999 a Plataforma Lattes,
na qual qualquer cidadão pode registrar, por meio de senha pessoal, um
currículo que assinale suas contribuições intelectuais.
Foi um feito insólito mundialmente, permitindo que, em acesso aberto,
consultem-se os indícios de competência intelectual de um cidadão.
Acesso aberto é uma cultura nova,
que se tornou possível devido à internet. Surgiu em 1990 com a Plataforma
ArXiv de artigos científicos. Nela, Grigori Perelman, matemático russo, depositou artigo resolvendo o mais intrincado problema de matemática até
então (Conjectura de Poincaré), considerado o maior feito científico de
2006 pela revista "Science".
Em 1997 ocorreu outra iniciativa
insólita mundialmente: a criação da
base SciELO de publicações de revistas científicas brasileiras em acesso
aberto na internet, que depois se expandiu para outros 13 países, abrangendo hoje mais de 600 revistas.
A cultura do acesso aberto é fruto
da dinâmica da internet. O compartilhamento exponencial de conhecimento não deixa margem a um controle oficial prévio. Os processos de
retificação, ampliação e aperfeiçoamento são feitos pelos usuários, como
no caso da Wikipédia. Nela, o pouco
que se perde em precisão para as enciclopédias clássicas se ganha em
abrangência e conteúdo.
A Plataforma Lattes tem hoje mais
de 1 milhão de currículos e, diariamente, são feitas dez mil atualizações.
Pode-se imaginar o que a cultura brasileira de deixar ao Estado a responsabilidade de verificar a exatidão dos
dados significaria em inchamento da
máquina burocrática do CNPq e a decorrente subtração de recursos para a
pesquisa.
Fraudes ocorrem no mundo acadêmico. Um trabalho científico pode ter
um texto contundente, preciso e relevante, mas é difícil avaliar as fraudes
de dados. Se esse for o caso, é muito
provável que os resultados de outros
pesquisadores não reproduzam os
achados e conclusões do fraudador.
No currículo Lattes, softwares podem se tornar poderosos para identificar incorreções e fraudes pelo cruzamento de dados dentro do próprio
sistema e com relação a outras bases
acadêmicas. O CNPq está empenhado
nessa direção.
Uma outra iniciativa, mundial, é registrar identificadores de cada documento. O intuito é facilitar buscas e
evitar erros nas referências aos documentos. O sistema Lattes já possui
links para esses identificadores e para
bases de revistas científicas.
É, porém, no momento de sua consulta por outrem que percepções de
erros e fraudes são mais prováveis,
principalmente quando os dados vão
ser utilizados para procedimentos de
concursos, promoções e admissões.
Nesses casos, olhos experientes detectarão indícios que levarão a consultas de outras bases para apurar a
acurácia dos dados. Um currículo forjado pode marcar indelevelmente
uma carreira.
ROGERIO MENEGHINI é coordenador científico do programa SciELO de revistas científicas brasileiras, professor titular aposentado do Instituto de Química da USP e
membro da Academia Brasileira de Ciências. Foi presidente da primeira Comissão de Avaliação da USP (1993-1997).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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