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TENDÊNCIAS/DEBATES
SIM
A confiança na comunidade científica
ROBERTO ROMANO
O COLLÈGE de France, instituído por Francisco 1º no Renascimento, foi planejado como
antídoto contra a orgulhosa Sorbonne. Esta, na época, deveria ser chamada, segundo o historiador J. Le Goff,
de "a corporação dos queimadores de
livros". Nos cursos livres do Collège,
os cidadãos encontram alimento para
o intelecto sob os auspícios do Estado
francês.
Em data recente, ali se realizou um
colóquio cujo tema era a autoridade.
Dentre as palestras proferidas, é relevante -quando debatemos os abusos
nas informações curriculares dos
pesquisadores- um título expressivo: "Como justificar a autoridade
científica?". Jean Bricmont fornece
resposta complexa à questão.
Após analisar os vários campos do
saber, ele discute as manipulações
que atenuam a confiança do público
nos operadores da ciência. É verdade
que, "se considerarmos o fato de que a
comunidade científica reúne seres
humanos, e não anjos, as fraudes ou
os erros são pouco frequentes e não
deixam de ser denunciados". A desculpa seria eficaz. Mas, diz Bricmont,
"o grande público não tem os meios
para avaliar a frequência das fraudes
ou dos erros, o que gera com certeza
uma forte perda de legitimidade".
Da não confiança na autoridade
científica, em termos coletivos, segue
a fuga dos recursos. Quando governos
tentam resolver a carência de verbas
sentida pelos pesquisadores, apelam
para as empresas nacionais ou transnacionais. Estas últimas não se preocupam em demasia com a autoridade
dos cientistas, o que agudiza a desconfiança da opinião pública e da mídia nos procedimentos acadêmicos.
Surgem, afinal, os elos entre ciência
e indústria bélica, com frutos que, se
considerados fatos recentes ocorridos na África e mesmo na Europa, são
muito questionáveis.
E conclui Bricmont: "Para ser digna
de confiança, a comunidade científica, bem como a que a envolve e financia, deveria seguir regras éticas extremamente estritas. Mas não vemos como elas poderiam ser aceitas ou impostas". (Antoine Compagnon [ed.]:
"De L'Autorité", Odile Jacob, 2008).
A Plataforma Lattes procura diminuir o abismo entre a opinião pública,
os operadores do Estado e a comunidade científica, além dos setores que
"a envolvem e financiam".
Equívocos podem ser corrigidos,
segundo sua maior ou menor gravidade (se próximos ou distantes da fraude), o que define uma questão técnica
e moral. O programa em debate exige
que as informações sejam assumidas
pelos pesquisadores. Daí não ser possível, nele, usar a retórica canhestra
do mundo político: "Eu não sabia".
O rigor maior na correção das "distrações" é tarefa da "accountability",
exigência a ser atendida pela comunidade acadêmica, tanto coletiva quanto individualmente.
A publicidade oferecida pela Plataforma Lattes tem sido eficaz no reforço da transparência e da autoridade
científica. Tanto é verdade que fraudes ou equívocos surgem e são corrigidos. Mas punições severas devem
ser aplicadas contra os abusos.
Na mesma linha, são desastrosos os
atos sigilosos dos assessores "ad hoc"
nas fundações que financiam pesquisas com recursos públicos. Sem revelar o nome de seus autores, pareceres
enviesados surgem em todas as áreas
do saber e cortam jovens promissores
(cuja infelicidade é não pertencer a
um grupo dominante nas coordenações das agências) ou derrubam inimigos minoritários nos campi.
É de admirar que o Ministério Público não tenha, até hoje, instaurado
procedimentos para corrigir essa
anomalia. Numa república, verbas
oficiais não podem ser empregadas de
maneira secreta. O Senado evidencia
os malefícios de sigilos corrosivos,
que também desvirtuam as fundações acadêmicas oficiais.
Em plano mundial, existe farta bibliografia que demonstra os perigos
da avaliação anônima efetivada por
colegas (G. Moran: "Silencing Scientists and Scholars in Other Fields",
Ablex, 1998).
Alem desses problemas internos da
academia, temos no Brasil as ligações
perigosas entre pesquisadores e poderosos. Aos intelectuais sobra prestígio, mas faltam votos, disse um filósofo. Políticos bem votados adoram
ilustrar seu currículo com títulos acadêmicos. Daí a necessidade da maior
prudência nesse particular.
ROBERTO ROMANO, 63, filósofo, é professor titular de
ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e
Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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