São Paulo, Domingo, 11 de Julho de 1999
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O dever de memória (1945-1999)


Não aprendemos a pagar o preço da paz e estamos, de novo, pagando o da guerra


FEDERICO MAYOR

"As guerras nascem nos espíritos dos homens, e é nos espíritos dos homens que devem ser erguidas as defesas da paz." Esse parágrafo abre a Constituição da Unesco, assinada em Londres em novembro de 1945. A paz se constrói a cada dia, e sua construção é obra de cada um. É uma atitude forjada pela educação, pela ciência e pela cultura, que dão a cada ser humano a faculdade de agir segundo sua consciência. Ao "si vis pacem, para bellum" opusemos progressivamente o "para pacem": quem quer a paz deve construí-la.
Quantos conflitos evitamos! Quanta dignidade, graças à "solidariedade intelectual e moral" proclamada pela Carta Magna da Unesco, foi defendida ou restaurada! O que soubemos evitar ou não chegou a ocorrer não se vê. A paz não se vê. Mas é a vitória maior, e todos nós (a mídia em primeiro lugar) devemos contribuir para dizer e concretizar o invisível, aquilo que não se mostra na tela, no rádio, na imprensa.
Há alguns anos, a democracia ganha terreno; a voz do povo se faz ouvir onde só havia silêncio. Era a paz da segurança. Hoje, começa a aparecer a segurança da paz. A discriminação racial foi vencida na África do Sul e na Namíbia. A paz foi obtida em Moçambique, El Salvador, Guatemala e será obtida no Ulster e no Oriente Médio, graças à determinação e à perseverança.
"Evitar o horror da guerra." Como? Por meio de um desenvolvimento mundial duradouro, com justa distribuição. Ajudando todos os países a adquirir os conhecimentos necessários. Fazendo com que todos os cidadãos sejam levados em conta nos assuntos públicos, não apenas contados em pesquisas e eleições. No centro do triângulo interativo paz-desenvolvimento-democracia está a educação. Para todos, ao longo de toda a vida. "A democracia é o melhor meio de lutar contra a pobreza", escreve Amartya Sen, brilhante Prêmio Nobel de Economia.
Nos anos 90, inúmeros países, entre eles os mais populosos do mundo, fizeram um grande esforço de investimento no ensino. A um aumento da educação corresponde, de maneira quase inversamente proporcional, uma diminuição do crescimento demográfico. A educação é o melhor regulador da natalidade. O ritmo atual de aparição de 254 mil novos "passageiros" diários no planeta Terra deverá decrescer se as tendências recentes se mantiverem.
Mas o círculo vicioso de um sistema financeiro fundado em empréstimos que enriquecem quem os concede e empobrecem quem os recebe gerou uma crescente assimetria. A riqueza se acumula de um lado, a miséria de outro. Em 1974, os países desenvolvidos concordaram, na Assembléia Geral da ONU, em consagrar 0,7% de seu PIB aos menos favorecidos. Com poucas exceções, caiu a porcentagem para a cooperação internacional (até 0,2% do PIB!) e cresceram as despesas militares.
Dever de memória, delito de silêncio. Não aprendemos ainda a pagar o preço da paz e estamos, de novo, pagando o da guerra. O preço (em vidas humanas, o monumento mais perfeito a preservar) do conflito de 1939-1945 ensejou a criação da ONU. Em 1989, com a queda do Muro de Berlim, o mundo entreviu novos horizontes de mudança.
Quando pensávamos, enfim, poder contar com os "dividendos da paz" e ver reforçado o sistema das Nações Unidas, aconteceu o contrário: ele se enfraqueceu, reduzido a funções de manutenção da paz (após os conflitos) e de ajuda humanitária. Toda a engrenagem do desenvolvimento obedece ao princípio do "crescimento zero". Mesmo a Unesco, que tem tarefas múltiplas, mas uma única missão -construir uma cultura da paz-, vê os Estados Unidos, país mais poderoso do globo, adiarem o seu anunciado retorno, por razões orçamentárias.
1999. Faz-se novamente uso da força, com os meios mais sofisticados; agora, fora do sistema das Nações Unidas, o que cria um precedente muito perigoso. Se atualmente o Conselho de Segurança é incapaz de agir com a rapidez e a autoridade exigidas, que se mudem para melhor suas características.
A ONU é a única estrutura democrática internacional estável capaz de sufocar o embrião da violência e do terror e de interpor com firmeza e sem demora suas forças quando a ausência de governo e a violação em massa dos direitos humanos são flagrantes.
Em 1999, é preciso refletir e agir como em 1945. A união dos países deve repousar sobre quatro novos contratos: social, natural, cultural e ético. Será preciso instaurar e respeitar códigos de conduta (sobre os movimentos de capital, a energia, a água, as armas) em escala planetária e investir mais nessa maravilha única que é cada ser humano. O custo é razoável se pensarmos que o investimento em armas superou, no ano passado, US$ 800 bilhões.
É preciso, o mais rápido possível, tomar outro caminho e escrever uma história diversa da que hoje podemos apenas descrever. Seria a melhor homenagem aos nossos filhos e netos, a quem prometíamos, em 1945, poupar-lhes o flagelo da guerra. O dever da memória.


Federico Mayor, 65, bioquímico, ex-reitor da Universidade de Granada e ex-ministro de Educação e Ciência da Espanha (1981 a 82), é diretor-geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).
Tradução de José Marcos Macedo




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