São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Salvando o governo do naufrágio

AUGUSTO DE FRANCO

No início de junho, publiquei um artigo nesta Folha de S.Paulo intitulado "O governo será como um náufrago". Dizia naquela ocasião: "Os golpes que podem ser realmente letais para o governo não vêm do PSDB ou do PFL, mas da própria base aliada". Dois dias depois, os fatos vieram confirmar a previsão. Sem entrar no mérito das denúncias, a entrevista de Roberto Jefferson à jornalista Renata Lo Prete, da Folha, comprovaram o que foi dito. Não tenho nenhuma bola de cristal. Nem tive qualquer informação privilegiada. Tratou-se de pura análise política.


Se Lula permanecer do jeito que está, é sinal de que houve algum tipo de acordo, que se dará mais por omissão que por ação


A mesma análise política revela agora que a situação se inverte. As únicas forças que podem salvar Lula do naufrágio não estão no PT nem na base aliada, senão no PSDB e no PFL.
Estejam ou não esses partidos querendo fazer isso, parece óbvio que admitir a possibilidade de Lula continuar agindo como está, por mais um ano, sem corrigir os erros que cometeu, significa, objetivamente, ajudá-lo a abafar a crise. É preciso ver que Lula só se salva do naufrágio com tal ajuda. Tendo aberto mão de tentar governar para se concentrar na própria salvação a qualquer custo, o governo está se esforçando para abafar a crise por meio de cinco artifícios.
Primeiro, vender a idéia de que os partidos e atores políticos são todos iguais, todos roubam ou, como sentenciou o próprio Lula, todos fazem a mesma coisa quando se trata de conseguir recursos para campanhas eleitorais.
Segundo, passar a idéia de que caixa dois de campanha e "mensalão" são a mesma coisa.
Terceiro, divulgar a interpretação de que, se é assim, o PSDB e o PFL são tão culpados quanto o PT, aliás, mais culpados ainda, porquanto já faziam isso há muitos anos, enquanto o PT foi colhido por ingenuidade ou fraqueza de alguns poucos dirigentes, resultantes da pouca convivência com o jogo duro do poder.
Quarto, disseminar a visão de que existem forças ("elites", conservadores, a direita, a imprensa) querendo desestabilizar o governo e reduzir o mandato de Lula por meio de um golpe (antecipação das eleições ou impeachment).
Quinto, difundir a ameaça de que, se isso vier a acontecer, a economia vai por água abaixo e haverá grave risco de instabilidade institucional (é a tese do "sem nós, o dilúvio", ou "Lula ou o caos").
Resultado: por meio desses embustes, o náufrago tenta passar à ofensiva. E a oposição, que nada tinha a ver com a imperícia do piloto nem com os atos ilegais ou ilegítimos cometidos, em um primeiro momento passou à defensiva.
Ao se posicionar açodadamente contra o impeachment, essa oposição botou um pé na armadilha. Pois todo mundo sabe que não é disso que se trata e sim de impedir que Lula permaneça agindo como está, ou seja, dificultando as apurações e vendendo versões falsas à opinião pública para conseguir chegar até o início da campanha eleitoral e dar continuidade ao seu único projeto estratégico: a reeleição. A possibilidade do impeachment é o único argumento capaz de fazê-lo mudar de comportamento. Se for descartada, em princípio, desarma a oposição e deixa o presidente livre para continuar no mesmo caminho irresponsável que trilhou até aqui.
Ademais, essa oposição esqueceu de esclarecer à nação que as evidências já são suficientes, como se disse, para uma parada total dos reatores. Ou seja, o governo atual não pode continuar se não desmontar o esquema, inédito pelo tamanho e pela ousadia, de aparelhamento do governo a serviço de um projeto de retenção do poder, financiado por uma verdadeira quadrilha encarregada de captar recursos pelos meios ilícitos da lavagem de dinheiro, do desvio de recursos públicos, da manipulação de licitações e da cobrança de propina. E encarregada de comprar aliados em todos os níveis, e não apenas no Parlamento: sim, é o tal "mensalão", porém mais ampliado que se denunciou -algo de qualidade substantivamente diversa do crime eleitoral costumeiro, de receber dinheiro "não-contabilizado" para uma campanhazinha aqui, outra acolá.
Que o dinheiro não era usado apenas para campanhas ficou mais do que provado na semana passada, entre outras coisas, com as evidências de pagamento a advogados para cuidar da "imagem do partido" no escabroso caso Santo André. Mesmo assim, as elites, as verdadeiras elites políticas e econômicas -aquelas que conspiram, sim, mas a favor de Lula- insistem na tática de continuar fingindo que acreditam que o chefe de governo não tem nada a ver com o que faz o governo que ele chefia.
Ao dar a mão a Lula para salvá-lo do naufrágio, seja em nome da blindagem da economia, da estabilidade institucional, da governabilidade ou de qualquer outra tolice semelhante e a despeito das possíveis responsabilidades do presidente, PSDB e PFL estarão abrindo mão de ser oposição. Ora, com um PPS, um PDT e um PV ainda tímidos, um PSOL e um PSTU muito pequenos e meio irresponsáveis, se PSDB e PFL abrirem mão de ser oposição, restará apenas à imprensa e à opinião pública a tarefa de tentar garantir que tudo não termine em pizza, quer dizer, não seja "resolvido" apenas com uma dezena (ou duas, que seja) de renúncias expiatórias.
Na última semana, alguns dirigentes tucanos e pefelistas tentaram retocar a imagem arranhada pelas vacilações dos dias anteriores. Resolveram desmentir o envolvimento de seus partidos em um acordo para salvar Lula. Ótimo que rejeitem o papel de pizzaioli. Mas a questão não está mais no plano das intenções ou declarações. O processo é mais tácito que explícito. Se Lula permanecer do jeito que está, é sinal de que houve algum tipo de acordo, que se dará mais por omissão que por ação.

Augusto de Franco, 55, é analista político do site e-Agora (www.e-agora.org.br) e autor de, entre outros livros, "A Revolução do Local: Globalização, Glocalização, Localização". Foi conselheiro e membro do comitê executivo do Conselho da Comunidade Solidária no governo FHC.


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