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São Paulo, quinta-feira, 11 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Capitalismo e democracia

DENIS LERRER ROSENFIELD

O mínimo que se pode exigir do pensamento é que trabalhe com a experiência, com o que os homens fazem politicamente e fizeram no transcurso da história. Se atentarmos para o século 20 e para o início deste século, observaremos que as sociedades democráticas, as que se organizam segundo a representação política, são as que desenvolveram e aperfeiçoaram as relações capitalistas de produção, e as sociedades que romperam com o capitalismo destruíram a democracia, dando lugar ao totalitarismo ou à tirania.
Isso sugere uma vinculação estreita, senão necessária, entre capitalismo e democracia. Os Estados democráticos contemporâneos, em suas mais diferentes formas de governo e de proteção social de seus membros, são todos capitalistas. Suas expressões mais relevantes são os EUA, a França, a Inglaterra, os países escandinavos, a Alemanha e a Itália, entre outros. Alguns são parlamentaristas, outros presidencialistas, outros mistos. Alguns estão baseados numa maior proteção social estatal, outros deixam aos cidadãos a livre escolha, tanto previdenciária e educacional quanto de planos de saúde.


As sociedades que romperam com o capitalismo sucumbiram à servidão, à miséria e à violência arbitrária


Todos, porém, estão fundados na livre concorrência, num mercado forte e em formas de representação política, deixando aos seus membros o tempo de ocupação com seus afazeres privados. São sociedades que recusam a politização de todas as suas instâncias. Para isso existem câmaras municipais, prefeituras, assembléias legislativas, governos, Câmara de deputados, Senado, Presidência da República ou o primeiro-ministro, de tal maneira que os cidadãos, por meio da delegação, possam se dedicar à realização de seus interesses particulares.
As sociedades de mercado, competitivas, respeitosas dos contratos que os seus cidadãos estabelecem entre si, deixando aos seus membros a iniciativa da auto-organização, têm no mérito, na valorização da competência, o eixo condutor de suas políticas e ações. Sociedades capitalistas são as que se fundam e se reconhecem na desigualdade social, dando-se democraticamente os meios de reduzi-la, oferecendo a todos os seus membros condições mínimas de bem-estar social. São sociedades que fundamentaram a delegação de poder através de eleições, da livre organização política e partidária, instituindo a República, com a sua divisão de Poderes. Elas estão baseadas na liberdade de organização sindical, partidária, religiosa, de pensamento e expressão, tendo na opinião pública um centro de sua própria educação e formação, onde uma sociedade aprende a se pensar, incentivando e convivendo com projetos políticos plurais.
Assim, o capitalismo estrutura-se segundo a igualdade de oportunidades, a igualdade de todos os seus membros perante a lei, recusando a igualdade material-social, pois parte do pressuposto de que todos os homens se diferenciam em suas atividades. Conforme as ações de cada indivíduo, uns ascendem e outros descendem na escala social.
As sociedades que romperam com o capitalismo sucumbiram à servidão, à miséria e à violência arbitrária. O surgimento do totalitarismo prende-se a essas tentativas de eliminação do mercado, da concorrência, do lucro, do mérito que distingue as pessoas e das formas de representação política. Lembremos a experiência stalinista na URSS, no Camboja, na China, na Albânia, nos países do Leste Europeu e em Cuba, com todo o seu cortejo de milhões de vítimas.
Os fuzilamentos e perseguições de Fidel Castro se inscrevem nessa triste e aterradora "lógica", que se concretiza pela negação de toda a lógica democrática. Os países do Leste Europeu encobriam o seu despotismo sob a denominação de Repúblicas populares e democráticas. A servidão se travestia dessa maneira, reivindicando uma "outra" forma de democracia. Ironia, não?
Em nome da igualdade social, estabeleceu-se a ditadura daqueles que dominavam esse tipo de discurso graças ao partido único. E, mediante esse domínio ideológico, aboliram a igualdade de oportunidades, a igualdade perante a lei, as liberdades religiosa, sindical, política, de pensamento e expressão, de imprensa. Nem a esfera familiar permaneceu ao abrigo de uma tal invasão totalitária e ditatorial.
No marco do debate brasileiro, essas observações poderiam, então, nos incitar a pensar, pois os que dizem aceitar a democracia se posicionando contra o capitalismo são, na verdade, os que pretendem impor a sua própria forma de dominação, com a abolição da propriedade, da liberdade e da igualdade em suas várias acepções. Os que têm em Cuba um modelo são, portanto, os que procuram subverter a democracia. Fica a pergunta: será que o problema do Brasil é o capitalismo ou a sua imperfeita realização?

Denis Lerrer Rosenfield, 52, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política".


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