São Paulo, terça-feira, 11 de setembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Muito além da transferência de renda

MARIA ALICE SETUBAL


Apesar dos resultados, tornam-se cada vez mais claros os limites desses programas. E aqui começam os desafios


NOS ÚLTIMOS dias, o Bolsa Família voltou à pauta. As novidades anunciadas para 2008 dão a dimensão da extensão do programa: 5,2 bilhões de dólares de orçamento, inserção de 1,7 milhão de jovens entre 16 e 17 anos e 11 milhões de famílias atendidas.
Baixada a poeira da polêmica gerada, uma análise preliminar, mas serena do programa traz para o debate algumas certezas e muitos desafios.
No campo das certezas, a geração de emprego e renda e a elevação dos níveis educacionais se configuram hoje como soluções universalmente aceitas na erradicação da pobreza. Assim como é incontestável que programas de transferência condicionada de renda -é o caso do Bolsa Família- contribuem decisivamente para a diminuição da desigualdade social. No Brasil, estudos iniciais apontam que foram responsáveis por um quarto da diminuição da desigualdade social de 2001 a 2005. Não é pouca coisa.
Apesar dos resultados, tornam-se cada vez mais claros os limites na implementação desses programas. Aqui começam os desafios. Se, por um lado, a transferência de renda diretamente às famílias pobres tem se mostrado muito mais eficaz do que o emprego de mecanismos indiretos de subsídios de preços, por outro, adotada como medida isolada, quase nada contribuirá para tirar as famílias do ciclo de pobreza a que estão submetidas geração após geração.
É preciso ir além. É necessário trabalhar as dinâmicas intrafamiliares e a relação da família na comunidade e buscar apreender, ao mesmo tempo, a subjetividade, a individualidade e a dimensão do coletivo.
Obviamente, essas não são questões simples e devem levar em conta um conjunto de fatores interdependentes, dos quais destacarei aqui três que considero fundamentais. Faço essa escolha baseada na experiência cotidiana de implementação do Ação Família São Miguel Paulista, bairro localizado na zona leste de São Paulo.
Parceria entre duas organizações sociais privadas -Fundação Tide Setubal e Instituto Alana- e duas empresas -Votorantim Metais e Nitroquímica- com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, o programa tem possibilitado o atendimento direto a 300 famílias.
Uma dimensão pequena quando comparada à de iniciativas governamentais e à quantidade de habitantes dessa região -mais de 380 mil pessoas. Entretanto, o dia-a-dia do programa tem nos proporcionado importantes aprendizados.
O primeiro fator a ser destacado diz respeito à criação de vínculos de confiança com as famílias, que podem ser construídos por meio de ações corriqueiras, como saber ouvir, compreender e levar em conta as histórias, os valores culturais e os modos de ser e sentir de cada família.
Evidentemente, esses são aspectos subjetivos. Por isso mesmo, só podem ser captados em visitas domiciliares, periódicas e realizadas por uma mesma equipe de profissionais. Paralelamente a isso, os vínculos de confiança necessitam de ações visíveis e concretas e do respeito de ambas as partes aos compromissos firmados.
O segundo aspecto a ser considerado é a importância do conhecimento da região em que se atua. Isso implica não só o levantamento de todos os equipamentos públicos e privados existentes no território como também uma articulação com lideranças e governos locais, associações de moradores, ONGs e empresas, parceiros decisivos na geração de impacto social. É preciso haver consciência de que, se as famílias em maior vulnerabilidade alcançarem um novo patamar de qualidade de vida, todos naquele território serão beneficiados.
O terceiro e último aspecto é a constituição de equipes competentes, bem qualificadas e compromissadas com as políticas sociais de sustentabilidade. Essa é uma condição essencial.
Precisamos inverter a lógica prevalente de que na periferia tudo pode ser improvisado e feito sem nenhuma experiência e qualificação. Programas aligeirados, que não levam em conta as condições básicas de implementação, têm sido prática comum não só de governos mas também de organizações da sociedade civil.
Transferir renda diretamente aos pobres tem se mostrado um mecanismo extremamente eficiente no combate à pobreza. Entretanto, ele sozinho é absolutamente impotente diante desse que é o maior e mais complexo desafio contemporâneo, aqui e no resto do mundo.

MARIA ALICE SETUBAL , 56, socióloga, mestre em ciências políticas pela USP e doutora em psicologia da educação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), é diretora-presidente do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e fundadora e presidente da Fundação Tide Setubal.


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Gerald Thomas: Os EUA são "made in China"

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.