São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Depois das ventanias

FÁBIO WANDERLEY REIS

A campanha e o desfecho do primeiro turno das eleições de 2002 merecem leitura sem dúvida positiva.
No enfrentamento mais importante, entre os candidatos à Presidência da República, tivemos disputa renhida e esclarecedora, ilustrada especialmente com o que houve de mais espetacular e surpreendente na campanha, o sobe-e-desce de Ciro Gomes.
Apesar das "baixarias" que alguns quiseram apontar nas denúncias de Serra sobre Ciro, o fato é que se exibiram com nitidez para o eleitor os traços de grave inconsistência e destempero pessoais do candidato do PPS. E o segundo turno com Lula e Serra apresenta claras vantagens, do ponto de vista do avanço institucional da democracia brasileira, perante a trajetória tortuosa e oportunista de Ciro e o personalismo populista de Garotinho.
Os resultados gerais indicam que temos um passo adicional na penetração do PT no eleitorado, que vem ocorrendo há tempos. Além da grande votação de Lula e de suas boas chances de vitória final, temos também as vitórias ou as votações expressivas de candidatos a governador do partido em certos casos, a disputa do segundo turno em outros, com destaque para José Genoino em São Paulo e o significativo aumento da representação petista no Congresso e em Legislativos estaduais.
Seria um engano pretender ler nessa penetração a manifestação de um eleitorado que se tenha tornado "ideológico" no sentido mais exigente da palavra. Parte do amplo voto oposicionista provém simplesmente do inevitável desgaste de Fernando Henrique e seus parceiros após dois mandatos presidenciais, tanto mais quando a era FHC se encerra em meio a grandes frustrações e ameaças no plano econômico e social.
Por outro lado, as pesquisas têm mostrado que, tal como se deu com o PTB de pré-64 e o MDB do período autoritário, também a identificação com o PT parece se dever a uma imagem "popular" em que se expressa uma insatisfação desinformada e difusa que pouco tem a ver, para as massas de eleitores que decidem uma eleição presidencial, com os temas mais complicados do debate político-eleitoral. Nesse sentido, mesmo o discurso moderado que o PT tem exibido pode ser, do ponto de vista eleitoral, de relevância secundária.


Parte do amplo voto oposicionista provém simplesmente do inevitável desgaste de Fernando Henrique


Não é o caso, porém, de subestimar o possível significado institucional do avanço petista. São inevitáveis as deficiências do eleitorado popular nas circunstâncias do fosso social que subsiste. Mas, se o jogo político-partidário continuar a se desenrolar de forma a permitir a criação de identificações partidárias estáveis e a canalizar, em termos partidários, a participação política popular, diferentemente das perturbações da dinâmica partidária que têm resultado das turbulências de nossa história política recente, estarão se criando as condições para que uma estrutura partidária consistente venha a operar como obstáculo às lideranças aventureiras ou de tipo personalista e populista.
Afinal, Maluf foi excluído do segundo turno, como ele mesmo disse, pela "ventania petista", que também ajudou a liquidar Newton Cardoso em Minas, com os 30% de votos obtidos por Nilmário Miranda na reta final. A redução do espaço de lideranças como essas surge em boa medida, assim, como o mero anverso da afirmação do PT. Naturalmente, isso está longe de garantir que estejamos livres delas. Certos aspectos do próprio êxito relativo de Ciro e Garotinho advertem nesse sentido, sem falar de Enéas...
Duas ponderações finais. A primeira é a indagação de até que ponto, seja qual for a natureza do apoio dado a Lula pelos eleitores, sua provável vitória tenderá ainda a ser percebida pelas elites como o acesso de uma perigosa esquerda ao poder. Felizmente, temos, no plano nacional, claros indícios de um aprendizado de convergência e moderação (o discurso moderado é aqui certamente relevante), em que o PT ruma a um modelo social-democrático, e setores importantes do empresariado parecem prontos a aceitar de maneira desarmada a convivência com ele nesses termos.
Mas há outro aspecto, que tem a ver com as relações de nosso processo político-eleitoral com a dinâmica econômica transnacional da atualidade. Nesse plano, o caráter classicamente problemático das relações entre o capitalismo e a democracia adquire feição nova, em que, em vez do golpe de Estado, a suposta ameaça da esquerda é confrontada, como sugeriu Rubens Ricupero, pelo "golpe de mercado" -o veto que se traduz em turbulência econômica e ameaça de crise catastrófica.
Aqui, sim, há ventania assustadora, ainda que ela revista o eventual êxito de um governo petista (ou seu simples funcionamento normal) de muito maior significação, dando-lhe relevância mundial. E não há como deixar de repelir o veto.



Fábio Wanderley Reis, 64, cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA), é professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos.


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