São Paulo, segunda-feira, 11 de outubro de 2004

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Saúde na cidade

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

No início da década de 70, montávamos, com orientação de Mário Chaves, modelo experimental de saúde em Campinas para demonstrar a viabilidade dos pressupostos de referência, contra-referência e integração dos diferentes níveis de complexidade do sistema. Tudo caminhava bem sob a égide da Faculdade de Medicina da Unicamp, dirigida então por mim, quando, por razões políticas internas, pedi demissão e outro diretor me substituiu. Procurei Mário Chaves para solicitar-lhe que desse continuidade ao programa. A resposta que ouvi me frustrou, porém foi uma lição: "Vou interromper o projeto, porque uma boa idéia colocada em mãos erradas pode ser destruída; prefiro preservá-la para não a perder".
Temo que isso esteja acontecendo com o "CEU Saúde", por isso escrevo. Ao propô-lo, a prefeitura tocou em uma necessidade premente, pois um dos pressupostos básicos para que o sistema funcione é a referência e contra-referência de pacientes, o que se faz organizando os serviços por níveis de complexidade. Os centros de diagnóstico especializados estão exatamente entre a atenção primária (centros de saúde) e os hospitais. Sem esse degrau intermediário o sistema não flui e os pacientes ficam mendigando exames especializados e internações.
Quais foram os erros, já que a idéia é correta?


Persiste o paradoxo do povo doente e centros de saúde vazios, por falta de acesso, acolhimento e eficiência
O primeiro foi anunciar com maquete uma unidade que já deveria estar à disposição da população há muito tempo, usando centros de saúde maiores, como os de São Miguel e Vila Mariana, transformados em centros de diagnóstico especializados e integrando-se melhor com o governo do Estado, aproveitando as enormes unidades (PAMs) recebidas do Inamps, além dos ambulatórios das dezenas de hospitais públicos (convenientemente distribuídos pela periferia de São Paulo), a maioria deles funcionando com ociosidade e baixíssimo grau de integração no processo de referência e contra-referência.
Isso tudo já deveria ter sido feito há muito tempo sem construção. Mostrar maquete agora é exibir desconhecimento e passar a impressão de artifício pré-eleitoral.
Outro motivo de indignação é que a atual prefeitura teve três anos para organizar a atenção primária (centros de saúde) e não o fez. Persiste o paradoxo do povo doente e centros de saúde vazios, por falta de acesso, acolhimento e eficiência. Sem centros de saúde funcionando, adianta pouco fazer centros de diagnóstico especializados, porque eles ficarão superlotados, com problemas que deveriam ser resolvidos nos centros de saúde.
A tentativa de correção desse descaso -ou incompetência- com promessas causou mais perplexidade do que esperança. O povo percebe que, na saúde, oito anos foram perdidos com o PAS e outros quatro desperdiçados entre o PSF mostrado como panacéia e a maquete mágica.
Temos na cidade o melhor aparelho de saúde da América Latina e os melhores profissionais. É preciso saber aproveitá-los, e hoje são três os movimentos necessários.
O primeiro é organizar a atenção primária nos moldes corretos nas 386 unidades existentes e suficientes (uma para cada 20 mil usuários do SUS), integrando ações de tratamento, diagnóstico precoce e prevenção primária no mesmo local e hora, sem burocracia, com fácil acesso e bom acolhimento. Com isso seriam resolvidos 90% dos problemas de saúde. Cerca de 10% dos centros de saúde deveriam, em locais estratégicos, funcionar 24 horas por dia, para atender urgências e emergências, com ambulâncias na porta para remoção orientada dos casos mais graves, aliviando de imediato o Sistema Centralizado de Emergência, que está saturado.
A dificuldade maior talvez seja o médico, que não tem condições de ir todos os dias à periferia para cumprir jornada de quatro horas. Entre idas e vindas e consumo de combustível, ele gasta quase tudo o que ganha. Mas ele iria para cumprir plantões de 12 ou 24 horas semanais, o que poderia ser uma solução com o mesmo custo e maior eficiência.
O segundo movimento é acabar com a ociosidade nos hospitais públicos (hoje com leitos suficientes), fazendo-os funcionar a pleno vapor, assim como seus ambulatórios, que se somariam aos PAMs -herdados do Inamps-, cumprindo, como já comentamos, a função de centros de diagnóstico especializados e tratamentos ambulatoriais.
O terceiro é mudar o eixo de comando do sistema, deslocando-o, em favor do paciente, para a atenção primária e ambulatórios de especialidades que deveriam determinar o atendimento nos hospitais.
Existem modelos a ser seguidos para as propostas descritas. Tudo isso se chama gestão. Requer experiência prolongada e aprofundada, criatividade e muita seriedade, mas, quando realizada, permite resultados bons a curto prazo e com baixo custo.
José Aristodemo Pinotti, 69, deputado federal pelo PFL-SP, é professor titular de ginecologia da USP e presidente do Instituto Metropolitano de Altos Estudos. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).

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