São Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 2002

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BORIS FAUSTO

As eleições e o sensível

Um balanço dos múltiplos aspectos da eleição presidencial, longe das paixões da disputa, abre-se ao tema do reflexo das sensibilidades no terreno político.
Com a vantagem que dá a visão retrospectiva, embora ainda próxima no tempo, podemos dizer, em termos muito gerais que, entre as razões da vitória de Lula, esteve a gradativa construção de um elo de afetividade, tecido mais com gestos do que com palavras, unindo eleitores e eleito. Essa afirmação, que por sua natureza não se apóia em números, indica a existência de uma conjuntura marcada por fortes carências no nível do sensível, por parte de setores ponderáveis da sociedade.
Certamente, há relação entre tal quadro e sensibilidades e mitos de longa duração, examinados aliás na significativa entrevista do sociólogo José de Souza Martins nesta Folha. Se enfatizo a abordagem de curto prazo, é porque ela nos permite olhar mais de perto certos sinais que emergiram no decorrer da campanha eleitoral e logo depois dela.
Arrisco dizer, exemplificando, que a ascensão de Roseana Sarney, até cair no duro chão dos fatos inexplicáveis, teve muito a ver com a construção de uma figura feminina suave, protetora e maternal. Isso, num momento em que crescera no país a convicção de que, em postos de comando, as mulheres têm virtudes específicas, adicionando à esfera pública características revalorizadas de compaixão, paciência, tolerância que se atribuem à alma feminina.
Não por acaso, o escorregão de Ciro Gomes, ao falar do papel de sua companheira, gerou resultados negativos quando, em outros tempos, o episódio até reforçaria os traços de sua masculinidade.
Mas foi o presidente eleito que, por artes do feiticeiro Duda Mendonça e por virtudes pessoais, acabou personificando o atendimento de urgências afetivas, ancorado em uma biografia que lhe permitiu construir identificações do gênero "eu sei o que é o sofrimento do povo" e em uma campanha de "paz e amor", que, na sua aparente banalidade, revelou-se de enorme eficácia. Tudo isso com a vantagem de enfrentar um adversário que não ultrapassou o terreno da racionalidade, terreno insuficiente -gostemos ou não- para ganhar eleições envolvendo uma grande massa.
Nas últimas semanas, o desejo de tocar o ungido, de conferir-lhe as honras de rei popular, tudo banhado em emoções traduzidas em lágrimas, veio confirmar o elo entre Lula e uma parcela significativa da população, que não é necessariamente a mais carente do ponto de vista material. Como o elo é ao mesmo tempo profundo e fluido, é difícil dizer quanto tempo irá perdurar, mas seria absurdo ignorar sua importância.
Não estou afirmando, nem de longe, que a explicação para a nítida vitória de Lula se situe apenas no plano das sensibilidades. Nem faria sentido negar a importância dos fatores explicativos usualmente utilizados na análise da vida política. Mas estou seguro de que introduzir nessa análise os temas da antropologia política é essencial para a compreensão mais ampla dos dias surpreendentes e incertos que estamos vivendo.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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