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BORIS FAUSTO
As eleições e o sensível
Um balanço dos múltiplos aspectos da eleição presidencial,
longe das paixões da disputa, abre-se
ao tema do reflexo das sensibilidades
no terreno político.
Com a vantagem que dá a visão retrospectiva, embora ainda próxima
no tempo, podemos dizer, em termos
muito gerais que, entre as razões da vitória de Lula, esteve a gradativa construção de um elo de afetividade, tecido
mais com gestos do que com palavras,
unindo eleitores e eleito. Essa afirmação, que por sua natureza não se apóia
em números, indica a existência de
uma conjuntura marcada por fortes
carências no nível do sensível, por
parte de setores ponderáveis da sociedade.
Certamente, há relação entre tal
quadro e sensibilidades e mitos de
longa duração, examinados aliás na
significativa entrevista do sociólogo
José de Souza Martins nesta Folha. Se
enfatizo a abordagem de curto prazo,
é porque ela nos permite olhar mais
de perto certos sinais que emergiram
no decorrer da campanha eleitoral e
logo depois dela.
Arrisco dizer, exemplificando, que a
ascensão de Roseana Sarney, até cair
no duro chão dos fatos inexplicáveis,
teve muito a ver com a construção de
uma figura feminina suave, protetora
e maternal. Isso, num momento em
que crescera no país a convicção de
que, em postos de comando, as mulheres têm virtudes específicas, adicionando à esfera pública características revalorizadas de compaixão, paciência, tolerância que se atribuem à
alma feminina.
Não por acaso, o escorregão de Ciro
Gomes, ao falar do papel de sua companheira, gerou resultados negativos
quando, em outros tempos, o episódio até reforçaria os traços de sua
masculinidade.
Mas foi o presidente eleito que, por
artes do feiticeiro Duda Mendonça e
por virtudes pessoais, acabou personificando o atendimento de urgências
afetivas, ancorado em uma biografia
que lhe permitiu construir identificações do gênero "eu sei o que é o sofrimento do povo" e em uma campanha
de "paz e amor", que, na sua aparente
banalidade, revelou-se de enorme eficácia. Tudo isso com a vantagem de
enfrentar um adversário que não ultrapassou o terreno da racionalidade,
terreno insuficiente -gostemos ou
não- para ganhar eleições envolvendo uma grande massa.
Nas últimas semanas, o desejo de tocar o ungido, de conferir-lhe as
honras de rei popular, tudo banhado
em emoções traduzidas em lágrimas,
veio confirmar o elo entre Lula e uma
parcela significativa da população,
que não é necessariamente a mais carente do ponto de vista material. Como o elo é ao mesmo tempo profundo
e fluido, é difícil dizer quanto tempo
irá perdurar, mas seria absurdo ignorar sua importância.
Não estou afirmando, nem de longe,
que a explicação para a nítida vitória
de Lula se situe apenas no plano das
sensibilidades. Nem faria sentido negar a importância dos fatores explicativos usualmente utilizados na análise
da vida política. Mas estou seguro de
que introduzir nessa análise os temas
da antropologia política é essencial
para a compreensão mais ampla dos
dias surpreendentes e incertos que estamos vivendo.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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