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TENDÊNCIAS/DEBATES
A sacerdotisa
JORGE BOAVENTURA
Segundo pensamos e o temos conceituado frequentemente, o ideal
democrático, universal e eterno por ser
o único compatível com a racionalidade
do ser humano, consiste "na aspiração
de construir superestruturas político-administrativas, o mais e o melhor possível, capazes de amparar, de proteger e,
quando indispensável, subsidiariamente, promover os interesses justos e os
anseios legítimos daqueles que irão viver sob a sua jurisdição".
Ao nos referirmos a interesses e anseios legítimos e justos, implicitamente
estamos supondo a existência de um referencial permanente de valores, em relação ao qual possam ser estabelecidas a
sua justeza e a sua legitimidade.
Agora vamos tocar em assunto que
nos parece de extrema importância e
singular gravidade. É que, na "Declaração Universal dos Direitos do Homem e
do Cidadão", promulgada pela assembléia nacional resultante da revolução
de 1789, na França, o art. 6º estabelecia
que "a lei é a expressão da vontade geral,
manifestada diretamente ou por intermédio de representantes". E, mais
adiante, que "ninguém será obrigado a
fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, a
não ser em virtude de lei".
Nenhuma alusão a qualquer referencial axiológico fixo, tudo passando a depender das preferências de maiorias volúveis de legisladores, eis que a vontade
geral, na prática, é sempre manifestada
por meio de representantes. Ou seja, superestimava-se a razão humana, o que
não é de estranhar, de vez que se estava
no apogeu do racionalismo, especialmente francês, pano de fundo da revolução de 89, predominantemente agnóstica, quando não abertamente atéia.
Como a revolução em causa, por parte
de seus reais mentores, alegava pretextos mais do que válidos, resultantes dos
abusos do absolutismo monárquico e
da discriminação, na lei, entre nobres e
clérigos, aos quais cabiam privilégios
negados a todos os demais, ela empolgou as massas e tornou-se vitoriosa.
E falamos dos seus reais mentores
porque, no art. 172, e último, da famosa
declaração, estabelecia-se que "a propriedade privada é sagrada, não podendo ser desapropriada, a não ser em face
de inquestionável e grave ameaça ao interesse público e, ainda assim, por meio
de prévia e justa indenização, paga em
dinheiro".
Tudo passou ao controle dos que, de fato, manipulam uma espécie de estranho "deus" pagão, o mercado
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Como se vê, não eram os famintos e
descamisados os mentores do movimento. Estes eram os que, por detrás da
aparência justa e nobre do art. 6º, o que
de fato faziam era a desvinculação do
processo civilizatório das suas bases
culturais, no caso da civilização ocidental factualmente representadas pelas sagradas escrituras, das quais defluem os
fundamentos do direito natural, que,
não substituindo o direito positivo, deve emoldurá-lo, por fornecer-lhe o referencial fixo de valores a que aludimos ao
expressar o nosso conceito acerca do
verdadeiro ideal democrático.
Substituídos como foram, na prática,
por decisões de maiorias eventuais e volúveis de legisladores -como se, filosoficamente, fosse sustentável a idéia de
que maiorias são fontes de verdade-, o
que ao menos os cristãos deveriam saber que não são, à luz do episódio ocorrido diante do pretório de Pilatos, em
que a maioria decidiu pela morte de Jesus, que o próprio pretor declarava inocente, tudo passou ao controle dos que
detivessem os meios de formar maiorias nas casas legislativas e de influir sobre o sentido das leis a serem aprovadas.
Em outros termos, tudo passou ao controle dos que, de fato, manipulam uma
espécie de estranho "deus" pagão, o
mercado, absurdamente erigido em ente autônomo, ao qual os homens, sem
cujo esforço ele não existiria, têm que
servir.
A tais controladores o que interessa
não é, obviamente, a verdadeira democracia, mas a sua forma degradada e espúria, que resultou do art. 6º mencionado aqui, e de outros incisos, da "declaração". É ela a sacerdotisa do "deus" mercado, cujos mentores tentam impor a
qualquer custo, sob a influência hipnoticamente atordoadora, colossal propaganda a seu favor.
Há uma lição imortal, porém, capaz
de ajudar a desfazer a hipnose da propaganda: "Pelos frutos os conhecereis". O
que acha o leitor desses frutos, no Brasil
e no mundo, com o alastramento da
violência em suas formas mais brutais,
com a corrupção se generalizando e se
tornando incontrolável, com o aumento do número de miseráveis e a concentração absurda dos bens em mãos de
pouquíssimos -exatamente os que,
por detrás do pano, regem o espetáculo,
lançando mão da sacerdotisa, como
pretexto cuja verdadeira índole estamos
tentando desmascarar?
Mente-se, e desde há muito, às multidões aturdidas. Exemplos? Quantas vezes já ouviu o leitor repetir que a Idade
Média foi uma idade de trevas? Entretanto a idéia de universidade e todas as
grandes universidades européias nasceram no medievo.
Voltaremos ao assunto, se Deus quiser, em um esforço quase solitário de esclarecimento acerca de assuntos que são
ignorados ou considerados tabus. Que
Deus nos ajude, bem como a independência desta Folha.
Jorge Boaventura, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.
www.jorgeboaventura.jor.br
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