São Paulo, sábado, 11 de dezembro de 2004

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CLÓVIS ROSSI

Milhões

CUSCO - Desço do táxi na Plaza de Armas, o imenso retângulo que é o centro de Cusco.
Dois garotinhos se aproximam. Alcides, o maiorzinho deles, 12 anos talvez, cor de cobre típica dos "cholos", os mestiços de indígenas com brancos, pergunta de que país sou e, ao ouvir a resposta, recita direto, quase sem tomar fôlego: "Brasil, capital Brasília; o presidente é Lula; o melhor jogador é Ronaldinho".
O recital é dado na expectativa de uns trocados para "comprar pollo" (frango). Espero os outros jornalistas brasileiros que cobrimos a 3ª Cúpula de Presidentes da América do Sul, e o grupinho em volta vai aumentando. Agora, há também meninas e um garotinho mirradinho, que diz se chamar Jorge e cuja altura mal passa dos meus joelhos, mas vivíssimo.
No álacre bolo de gente miúda, alguém recita: "Estados Unidos, capital Washington". Pergunto quem é o presidente dos Estados Unidos. "Clinton", responde a menina, com leve defasagem na decoreba a recitar para turistas. "Não, é Bush", ensina o minúsculo Jorge.
Pergunto quem é o presidente do Peru. Todos sabem que é Alejandro Toledo, mas ninguém parece gostar dele. Preferem Alberto Fujimori, o canastrão que teve de exilar-se no Japão depois de mil escândalos.
"Com Fujimori, a gente podia trabalhar; agora não", explica Alcides. Trabalhar? "É, vender cartões-postais", diz o menino.
Insistem em que lhes pague o "pollo", com seus olhos tristes.
Antes de dar-lhes o dinheiro para o "pollo", faço Alcides jurar que vai repartir com todos os nove companheiros. Pega o dinheiro e dispara praça abaixo, seguido de Jorge, o menor, seu irmão, no meio dos carros.
Entro no restaurante pensando na mitológica Evita Perón e em uma de suas frases mais famosas e repetidas, quando já estava doente: "Volveré y seré millones".
É, são mesmo milhões. Milhões de Alcides e Jorges perdidos nas noites da América Latina.


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