São Paulo, sábado, 11 de dezembro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

São positivas as mudanças do novo Código de Processo Penal?

NÃO

Os riscos de um projeto autofágico

ROBERTO DELMANTO JUNIOR

A busca do equilíbrio. Esse talvez seja um dos grandes desafios dos tempos modernos -e como é difícil atingi-lo. O projeto aprovado pelo Senado Federal bem demonstra essa dificuldade.
Seu relator, o senador Casagrande, subscreveu parecer opinando pela rejeição de importantíssimas emendas apresentadas pelos senadores José Sarney, Antonio Carlos Valadares, Aloizio Mercadante e Flexa Ribeiro, além de outros, que visavam corrigir gravíssimas distorções do projeto.
Parecer este que acabou aprovado, embora o senador Mercadante tivesse pedido para ampliar as discussões. Vou citar apenas cinco exemplos:
1) Com superficialidade, rejeitou-se a emenda nº 165, mantendo-se o odioso parágrafo segundo do art. 502, de autoria do senador Demóstenes Torres, que suspende a contagem do prazo prescricional durante o julgamento de recursos no STF e no STJ. Trata-se de um dos maiores retrocessos da história, fomentando a letargia do Judiciário.
Pior, viola a Constituição ao tornar todos os crimes imprescritíveis, desde que existam recursos a essas cortes, com agressão do direito a julgamento em prazo razoável (art. 5º, incisos XLII, XLIV e LXXVIII).
2) Foram refutadas, com simplismo, as emendas nºs 172 e 173, mantendo-se a prisão preventiva com exclusivo fundamento na gravidade da acusação, ou no imaginário perigo de reiteração criminosa (art. 554, IV e V), ofendendo a presunção de inocência (art. 5º, LVII) e ignorando jurisprudência do STF.
Afinal, a prisão de quem será julgado só se justifica para proteger provas e garantir a aplicação da lei penal, em caso de fuga. Ao invés de o Judiciário ser mais célere, opta-se por aumento de prisões que significam condenação antecipada, contrariando o próprio ideal de reduzir o número de presos provisórios!
3) Também foi rejeitada a emenda nº 30, mantendo-se o art. 29, segundo o qual policiais, como em um filme norte-americano, vão colher declarações de pessoas investigadas "em qualquer local" e "de modo informal". Imaginem os abusos que presenciaremos com "tiras" adentrando nas casas ou no trabalho das pessoas (já estarão demitidas!), ou abordando-as na rua, voltando com seus filhos da escola.
4) Afirmando que um ano de interceptação telefônica seria "razoável" (!), refutou-se, ainda, a emenda nº 110, que visava alterar o art. 249 para limitar o monitoramento a 90 dias, mesmo porque até o estado de defesa, sob o qual as liberdades individuais são restringidas, tem limite máximo de 60 dias, como decidiu o STJ (HC nº 76.686/PR).
5) Rejeitou-se, ainda, a importante emenda nº 170, que buscava garantir que todo preso em flagrante fosse apresentado a um juiz, como determina a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, para evitar a tortura policial. Isso é elementar em países desenvolvidos e, aqui, é simplesmente ignorado, como se não houvesse tortura.
Se não fosse a vigorosa atuação da Ordem dos Advogados do Brasil, e a de advogados como René Dotti, Guilherme Batochio e Alberto Toron, até o habeas corpus teria sido literalmente ceifado!
Enfim, estamos diante de um "projeto autofágico", em que os ideais de modernidade, celeridade e respeito às liberdades individuais, enunciados em seu preâmbulo, são devorados pelas entranhas de seus próprios artigos.
Espero que a Câmara o rejeite e apresente outro, como o do deputado Miro Teixeira, com apoio do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Aprovado como está, o novo CPP instituirá o Estado policialesco, com esses e outros retrocessos travestidos de aparente modernidade.
Vê-se como é mesmo difícil o equilíbrio e como é fácil cair.

ROBERTO DELMANTO JUNIOR, 42, mestre e doutor em processo penal pela USP, advogado criminalista, é professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), conselheiro estadual da OAB/SP e coautor do "Código Penal Comentado" e de diversas obras.

E-mail: robertojr@delmanto.com.

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