São Paulo, Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Moralidade empresarial, mulher e Internet


Uma nova moralidade dá à empresa um novo perfil que é, em certa medida, feminino


RENATO JANINE RIBEIRO

Uma série de outdoors de um provedor da Internet chama a atenção. Mostram as possibilidades que ela abre: "a Internet do conhecimento", "da galera", "da diversão" etc. Em suma, do trabalho e do lazer em suas diversas formas. Mas o que é significativo são dois desses cartazes.
Um deles choca: "a Internet do dinheiro", apresentando dois homens de 60 anos ou mais, gordos, rindo debochados, um deles com um charuto. Somam-se os sinais para indicar que acabam de ganhar dinheiro -e muitíssimo- em alguma transação de puro negócio. São rentistas, especuladores. É o único outdoor que não atrai, cujos personagens não são socialmente positivos e que, provavelmente, dada a idade e a posição social, não usam a Internet. Em todos os outros é solicitada uma identificação, ou pelo menos uma empatia, do espectador com o cartaz. Mas ela parece difícil no caso desse outdoor.
Ora, o que surpreende é que há outro cartaz: "a Internet da empresa", que é o contrário quase exato daquele (estranho, não é? Empresa e dinheiro deveriam andar juntos). Aqui, uma mulher bonita, elegante, sóbria, de seus 35 anos, aparece pensando.
O contraste não poderia ser maior. O dinheiro, como fim em si, suscitando um prazer desbragado e quase obsceno, fica ligado ao mundo masculino, à velhice, ao deboche, no limite da imoralidade. Ele é improdutivo. Passou a época em que seria fértil, fecundo. Não trabalha nem gera. Seu prazer é anti-social.
Mas a empresa -continuo falando dos cartazes- curiosamente não está no mundo do dinheiro nem do capital. Seu mundo pertence a um certo tipo de trabalho: feminino. Enquanto os dois homens riem, celebrando seu sucesso financeiro, a empresária, séria, medita seu ingresso e deslanche no mundo da produção. Provavelmente produza mais serviços do que bens -e mesmo que sejam bens, que sua matéria seja física, essa produção estará cada vez mais conotada pelas qualidades dos serviços.
Ela é feminina porque produz cuidados, e não coisas; serviços, e não mera mercadoria. Mas, de todo modo, a empresária do outdoor está investida da moralidade que atribuímos à produção, e não à especulação.
Os sinais dessa propaganda são muito claros -e mais ainda se não tiverem sido deliberados. Porque se o publicitário não teve em sua consciência o que estou aqui analisando, será indício de que captou, intuitivamente, uma série de mudanças nas mentalidades brasileiras. Vejamos quais.
A mulher não se confina mais no lar, porém ocupa a simbologia da empresa no que esta tem de inovador: articular-se com o mundo pelos bites e fibras óticas. Mais que isso: pensar. A nova empresa -ouvimos isso todos os dias- não pode mais ficar só repetindo os hábitos do passado. Precisa inventar, enfrentar o risco. Ou seja, precisa substituir os bons contatos no governo pelo exercício do pensamento.
Assim, a mulher, outsider no mundo da empresa -mas fecunda- torna-se emblema de uma nova idéia de empresa. Esta não tem a ver com a especulação, que recebe socialmente o estigma de algo terminal, amoral. Uma nova moralidade confere à empresa um novo perfil que é, em certa medida, feminino. E também o mundo de idéias novas tem mais a ver com a mulher inovadora do que com o homem repetitivo, com a jovem maturidade do que com a infecunda senilidade, com a produção do que com a predação.
Mas essa empresa de idéias -e ideais- tem pouco a ver com o dinheiro. Talvez tenha dificuldade em se capitalizar. Talvez não tenha êxito. Mas não deixa de ser significativo, num país que valoriza o dinheiro -mas não a especulação-, que a empresa esteja adquirindo traços femininos ao mesmo tempo que altamente tecnológicos e que isso proponha uma nova moral das relações sociais, rompendo com a do ganho pelo ganho.
Esse novo ideal pode dar certo ou pode ser apenas uma fantasia. Mas quem frequenta um pouco o que se escreve e diz sobre relações humanas na empresa ou sobre novos modos de gestão pode ver nesse outdoor bem mais do que um simples tiro n'água. Um projeto de moralidade empresarial ali cintila.


Renato Janine Ribeiro, 49, é professor titular de ética e filosofia política da USP (Universidade de São Paulo) e autor de "A Última Razão dos Reis" (Companhia das Letras), entre outras obras.



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Pedro Cury: Uma tréplica necessária

Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.