São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os passos da democracia

MARCO MACIEL


Regimes com ambição de durar para sempre terminaram mostrando-se incapazes de sobreviver ao século em que nasceram

Ao atingirmos a última década do século 20, a democracia se transformou numa proposta sem alternativas e numa realidade virtualmente sem contrastes. Tamanha preponderância é baseada numa série de evidências históricas que apontam no fim do século 18 o lançamento de seus fundamentos e o 19 como aquele em que os regimes democráticos foram submetidos a prova considerada definitiva.
Os desafios sobrevieram no "breve século 20" iniciado, na concepção do historiador inglês Eric Hobsbawm, com o período que ele mesmo chamou de "A Era dos Extremos": a experiência socialista na União Soviética, em 1917, e as tentativas de afirmação de regimes totalitários de direita na Alemanha nazista, na Itália fascista, no Japão militarista e suas variantes, como o franquismo na Espanha, o salazarismo em Portugal e o caudilhismo na América Latina. O mundo viveu então confrontos de concepções ideológicas radicais, sem precedentes, testadas em duas dilacerantes guerras.
Regimes com ambição de durar para sempre terminaram mostrando-se incapazes de sobreviver ao próprio século em que nasceram. Ou foram derrotados militarmente, ou se estiolaram politicamente. Assim, tornou-se generalizada a crença em que, superadas as duras provas do século 20, a democracia deveria viver a era do seu inquestionável triunfo. Afinal, que outro sistema político poderia superar um regime que, como realidade e aspiração, foi capaz de subjugar tantas adversidades?
Chegamos inclusive ao ponto em que, com fundadas razões, a ONU poderia proclamar, ao realizar a Cúpula do Milênio -de que tive oportunidade de participar-, que nunca houve, em nenhuma outra época da história, tanta democracia no mundo!
O Brasil, integrante desse universo, protagonizou o mesmo destino que o restante do mundo ocidental, culminando com a participação direta na segunda Grande Guerra. Da Independência a 1930, vivemos mais de um século sob o Estado de Direito. No século 19, construímos nossas instituições políticas, asseguramos a integridade territorial, consumamos a unidade linguística, defendemos com êxito todas as tentativas de violação de nossa soberania e banimos, ainda que tardiamente, a maior nódoa de nossa história: a escravidão, cujos efeitos indeléveis só agora, timidamente, estamos tentando minorar.
Assim como os regimes democráticos do mundo passaram, no século 20, por todas as provas, enfrentando e superando guerras, conflitos e confrontos de toda natureza -como devastação, genocídios, fome, insegurança e agudas crises econômicas-, também no Brasil os obstáculos que fomos capazes de vencer serviram para transformar a democracia, o pluralismo e a justiça social em pautas de uma agenda política a respeito das quais parece não haver mais discrepâncias, sobrevindo apenas residuais e irrelevantes dissidências.
Isso significa dizer que, no Brasil do século 21, a democracia tem todas as condições para prosperar, progredir e se aprimorar, transformando-se não só na maior aspiração coletiva de caráter consensual, mas também na realidade de que todos possam livremente desfrutar. Prova do que afirmo foi, para dar um exemplo, o primeiro pleito realizado no século 21, ou seja, em 2002.
Ao lado da evidência histórica que justifica a preponderância, a preferência e a hegemonia democrática na maior parte do mundo contemporâneo, não se pode esquecer o papel desempenhado pela comprovação econômica. As áreas de maior prosperidade e de maior igualdade nos períodos de paz sempre foram aquelas em que ensejaram as maiores democracias. A constatação que vale para os diferentes períodos da história contemporânea, nas mais diversas partes do mundo, aplica-se com igual propriedade ao Brasil, neste século que tem tudo para se transformar, também entre nós, na era da consolidação definitiva da democracia.
Essas conquistas exigem que continuemos avançando, no sentido de melhorar o nosso desempenho econômico, e investindo na superação das ainda enormes discrepâncias sociais. E isso, todos concordam, só se conseguirá com mais democracia. Os poderes do Estado têm que melhorar seu desempenho, refletir as aspirações da sociedade e buscar novos instrumentos que aperfeiçoem a qualidade da política que se pratica no Brasil. Daí a importância das reformas políticas. Elas devem, além de alterar o sistema eleitoral, criar condições para o fortalecimento dos partidos políticos, aprimorar o sistema de governo, o presidencialismo, redefinir a Federação brasileira e republicanizar a República, restaurando valores erodidos.
Há necessidade de dar destaque às reformas políticas, incluindo-as entre as prioridades de 2003. Elas são fundamentais para que não somente melhoremos o desfrute democrático no país, mas, também, para aprimorar os níveis de governabilidade, indispensáveis para que tenhamos um país com o qual sonhamos -isto é, uma sociedade aberta, desenvolvida e sobretudo justa.

Marco Maciel, 61, é senador eleito pelo PFL de Pernambuco. Foi vice-presidente da República (1995-1998 e 1999-2002) e ministro da Educação (governo Sarney).


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