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Renúncia fiscal não é filantropia
MARCELO GARCIA
A lógica dessa filantropia é definir por ações de visibilidade. Não cruza os fossos da exclusão e não vai a lugares de extrema miséria
NO ÚLTIMO dia 21 de dezembro, li com preocupação um
artigo neste conceituado jornal (seção "Tendências/Debates") em
que a autora produz uma falsa dicotomia segundo a qual o leitor deveria
decidir se os recursos devem ir para o
leão ou para as criancinhas. É importante destacar que o leão, no caso, é o
Imposto de Renda que pagamos e que
define grande parte dos recursos
constitucionais para a assistência social, a saúde e as ações emergências
para o combate à pobreza.
O primeiro cuidado que precisamos
ter é não considerar que o pagamento
desse imposto significa desviar recursos das crianças e dos pobres. Acreditar nessa hipótese é não reconhecer
que a política de assistência social é
constitucional e é dever do Estado.
Há, em todo o país, ações da maior
seriedade exercidas pelos governos
federal, estaduais e municipais. Temos que defender a responsabilidade
do Estado brasileiro no combate à pobreza e no fortalecimento de uma política pública de assistência social, em
que fique claro para o brasileiro que o
acesso a programas de transferência
de renda, habitação e ações complementares de assistência social são um
direito do cidadão, e não um favor ou
uma benesse de empresas privadas.
Renúncia fiscal não é filantropia.
Quando uma empresa deixa de pagar
Imposto de Renda para doar para um
fundo, ela não está fazendo uma doação, e sim deixando de pagar imposto
que poderia ser redistribuído para todo o Brasil. Filantropia ocorre quando a empresa retira recursos de seu
lucro para fazer ações sociais.
Ao fazer um repasse para um fundo
da criança, a empresa não está fazendo doação, e muito menos filantropia.
Ela está deixando de destinar aos cofres públicos recursos que poderiam
fortalecer ações governamentais.
A renúncia fiscal da cota patronal
do INSS significa algo entre R$ 3 bilhões e R$ 5 bilhões. Se esses recursos
fossem para o "leão" e, depois, para os
fundos de assistência social, sem dúvida poderíamos estar em uma situação melhor da que estamos.
Quem combate pobreza é o Estado.
Não podemos banalizar o volume das
renúncias fiscais. E não podemos tangenciar responsabilidades. O Estado é
a inteligência do processo de combate
à pobreza, e não mero coadjuvante.
Se, como diz a autora, a filantropia
tem sua própria lógica e interesses na
identificação do público atendido, o
caminho não é o repasse de recursos
públicos do Imposto de Renda, mas a
doação de recursos de lucros líquidos
ou de arrecadações entre empresários e funcionários da empresa para
que estes possam escolher onde fazer
a sua boa ação.
O público não pode ser submisso ao
interesse do privado. A sociedade tem
a obrigação de agir com toda a população vulnerável de suas cidades e, sobretudo, agir no campo das vulnerabilidades sociais. Não pode deixar que a
lógica da filantropia decida aonde o
recurso público será usado. Se é preciso decidir, como somos provocados
pela autora -o que, tenho certeza,
não é o caso-, eu decidiria que as empresas paguem seu imposto normalmente e que os recursos voltem em
forma vinculada para os fundos.
Em geral, a lógica dessa filantropia
é definir por ações de visibilidade e de
proximidade dos meios de comunicação. A lógica da filantropia não atravessa os fossos da exclusão e não atua
em lugares de extrema miséria e vulnerabilidade social. Essa parte fica
sempre com as ações estatais. E onde
não há empresas? Lá não haverá recursos do fundo da criança?
Investir em nosso futuro é assegurar o fortalecimento do Sistema Único da Assistência Social e a implantação dos centros de referência da assistência social em todos os municípios.
É assegurar que todas as famílias vulneráveis do Bolsa Família possam ter
acompanhamento permanente. É assumir o compromisso de acabar com
a indigência no país e cumprir as metas do milênio até 2015.
Para isso, precisamos que as empresas paguem seus impostos e, se
quiserem fazer repasses de 1% do seu
Imposto de Renda, que o façam para
ações públicas, e não privadas, e que
se preocupem com resultados globais,
e não em garantir uma lógica individualista da filantropia.
Nós não queremos uma filantropia
egoísta e preocupada com sua própria
lógica. Queremos uma ação da sociedade brasileira coordenada pelo Estado brasileiro como um todo e que defina ações e metas para toda a população. Mas, se é para decidir, nós já decidimos. Vamos pagar o Imposto de
Renda e discutir em nossos conselhos
as prioridades de cada cidade, Estado
e União. Vamos priorizar, dessa vez,
os vulneráveis da sociedade, e não os
desejos de quem quer "ajudar" por
meio de um recurso que, na verdade, é
público, e não privado.
MARCELO GARCIA, 37, é secretário municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro, membro do Conselho Nacional de Assistência Social e presidente do Colegiado Nacional de Secretários Municipais de Assistência Social.
Foi secretário nacional de Assistência Social (2000-2002).
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