São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A hora e a vez

JOAQUIM FALCÃO


Não pagar precatórios é uma decisão política. Não é problema de recurso, mas de prioridade. As conseqüências são gravíssimas


SE DEPENDER do senador César Borges, do PFL-BA, em 2007 o Congresso Nacional resolverá o problema dos precatórios. Será criada nova legislação para que os governos paguem suas dívidas fruto de decisões judiciais. Existem hoje 16 propostas de emenda constitucional sobre o tema no Congresso. Algumas com mais de dez anos de tramitação.
A situação chega a um limite. Estima-se que os governos devam hoje a empresários, pensionistas, contribuintes e outros um valor superior a R$ 63 bilhões. Dívidas vencidas e não pagas. Parecem dizer aos credores: "Devo, não nego, pago quando puder, mas, como não posso, não pago". Será que os governos realmente não têm dinheiro para pagar os precatórios?
No fundo, têm dinheiro, sim. Vejam só. A imensa maioria das discussões sobre precatórios sublinha apenas o aspecto jurídico: como executar esse título judicial? Aí, a discussão doutrinária e jurisprudencial é sem fim. Esbarra na sempre impossível intervenção federal nos Estados, dos Estados nos municípios e no seqüestro de verbas -únicos meios aptos a fazer com que o credor receba o que lhe é devido. Como são medidas política e judicialmente difíceis pela própria jurisprudência do STF, o credor fica sem o seu direito. A justiça não é feita.
Se analisarmos, porém, o precatório do ponto de vista orçamentário, a nudez crua da verdade aparece -diria Eça de Queiroz. No fundo, o não-pagamento dos precatórios é escolha política. Questão de prioridade orçamentária. Ante recursos que, sabemos, serão sempre escassos, os governos preferem gastar com outras despesas, umas mais, outras menos justificáveis. Pagam-se juros, aumenta-se pessoal, fazem-se obras, gasta-se com propaganda oficial -e por aí vamos.
Ou seja, a ordem de gastar do ministro da Fazenda, do governador ou de seu secretário da Fazenda prevalece sobre a ordem de pagar dada pelo Judiciário. Nada mais claro e simples. Não é problema de recurso, mas de prioridade. As conseqüências são gravíssimas e cada vez mais perceptíveis.
O não-pagamento acarreta insegurança democrática. Torna o Judiciário não Poder independente, como manda a Constituição, mas, de fato, Poder dependente da escolha do secretário da Fazenda do dia. Pior. Perante a população, que não distingue quem é o responsável tecnicamente pelo não-pagamento, quem sai prejudicada é a imagem do Judiciário. Sua legitimidade democrática. Para a opinião pública, o Judiciário não foi efetivo. Poder sem poder. Reformar o Judiciário é também reformar o sistema de precatórios.
Mudar a legislação. Romper com uma cultura jurídica que imuniza o Estado diante de suas responsabilidades para com o cidadão. De resto, qual legitimidade tem um Poder Executivo para exigir (com razão) a reforma do Judiciário se ele próprio não cumpre suas obrigações judiciais?
O não-pagamento acarreta também insegurança econômica. Não foi por menos que o influente Council of the Americas, em recentíssimos estudos e debates sobre o Estado de Direito na América Latina, tem apontado o não-pagamento pelo Estado de suas obrigações como um dos principais fatores de insegurança jurídica para investidores estrangeiros.
Em audiência pública realizada pelo Senado sobre o projeto de emenda constitucional nš 12/2006, de autoria de Renan Calheiros, sob a inspiração de Nelson Jobim, o ministro Gilmar Mendes se mostrou favorável à mudança. Pelo projeto, se os governos comprometessem uma ínfima parcela do Orçamento para cumprir as decisões do Judiciário, essa dívida estaria zerada em cerca de cinco anos.
Aliás, para o experimentado Everardo Maciel, nem de emenda constitucional precisaria para resolver o problema. Bastaria um conjunto de lei complementar e leis ordinárias federais, estaduais e municipais, com base no artigo 170 do Código Tributário Nacional.
O importante é que o Senado e a Câmara decidam. Dificultar a decisão legislativa resultará em fato simples: os governos continuarão não cumprindo suas obrigações constitucionais. O que não é bom nem para a democracia, nem para o desenvolvimento econômico, nem, sobretudo, para a consolidação do Estado de Direito no Brasil.
A convergência em torno da necessidade de uma decisão do Congresso deve se sobrepor às eventuais divergências, ainda que razoáveis, sobre um ou outro aspecto do projeto. O impasse favorece o devedor. Nesse novo Legislativo, o país precisa conhecer com precisão qual o montante dessa dívida. Afinal, como pergunta o próprio Everardo, existe crédito mais líquido e certo contra a Fazenda Pública do que um precatório?

JOAQUIM FALCÃO , 63, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), professor de direito constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ, é membro do Conselho Nacional de Justiça.


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