São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2011

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Festa e paradoxo

Derrubada da ditadura de Hosni Mubarak dá lição ao Ocidente e cria a chance de unir-se pela primeira vez, no Egito, laicismo e democracia

As cenas de entusiasmo, culminando 18 dias de mobilização civil, ganharam as atenções e a simpatia do mundo inteiro. Na Praça Tahrir, a multidão celebra o fim da ditadura de Hosni Mubarak; pela televisão e na internet, o espetáculo é visto em toda parte.
Seguiu-se, até agora, aquilo que há de mais entusiasmante nos clássicos roteiros de derrubada de uma tirania. A sequência de protestos pacíficos, os negaceios dos governantes, o irresistível acúmulo das pressões populares, o colapso final: o Egito de 2011 relembra, desse aspecto, o Leste Europeu de 1989.
Uma coisa, contudo, é registrar essa simpatia à distância, inspirada em valores universais; outra é levar em consideração a realidade concreta de um país, atravessado de tendências políticas contraditórias e de aspirações não raro conflitantes entre si.
Em que medida se pode antecipar, para a nação egípcia, um futuro de consolidação democrática baseada num governo laico? Seria extremamente arriscado vaticinar o desfecho de uma disputa que, a rigor, mal se adivinha: a que opõe os setores modernos da sociedade egípcia e as organizações historicamente ligadas ao fundamentalismo islâmico.
Um dos paradoxos políticos daquele país, também presente em outras nações árabes, é que dois aspectos fundamentais do Estado moderno -a democracia e o laicismo- não puderam combinar-se. Do ponto de vista teórico, seria incorreto dizer que essa dupla conquista moderna não passa de uma particularidade do Ocidente, pretensiosamente elevada à condição de verdade universal.
Bem ao contrário, consiste a rigor numa garantia, quase que matemática, de que através do respeito generalizado às minorias, ao livre culto religioso e à participação dos cidadãos, todas as particularidades, todas as "diferenças", possam coexistir num mesmo território.
Esse pressuposto teórico não deixou, ao longo dos anos, de deturpar-se de vários modos, quando os interesses do Ocidente se voltaram aos assuntos internos de cada país árabe.
Ditaduras foram prestigiadas, assim, como um "mal menor" frente à ameaça soviética, no passado, e ao terrorismo islâmico, hoje. Ao mesmo tempo, regimes de forte preponderância religiosa continuam a ser defendidos pelos Estados Unidos, na medida de suas conveniências estratégicas e econômicas.
O poder de Mubarak, não cabe esquecer, manteve-se com apoio do Ocidente, na medida em que representava um papel estabilizador no conflito árabe-israelense.
Por fim, não é demasiado exagero dizer que, no Iraque e no Afeganistão, tentou-se impor a democracia pelas armas e pela ocupação estrangeira, assim como se tentou garantir o Estado laico pelos regimes de força e pela conivência com a corrupção.
Talvez seja nisso, com efeito, que se pode medir a diferença entre universalismo de princípios e arrogância na prática política.
A solidariedade com a população egípcia, fundada na esperança de que valores universais se consolidem no país, pode pouco, a rigor, diante das incógnitas do futuro. Mas que esse sentimento seja visto, ao menos, como um limite para as pretensões, tantas vezes mal-sucedidas, dos países ocidentais de intervir no destino de outros povos e de dar-lhes lições, sem condições morais nem habilidade para tanto.


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