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São Paulo, quarta-feira, 12 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

As causas da guerra de Bush

DEMÉTRIO MAGNOLI

A decisão da administração Bush de derrubar Saddam Hussein e impor um protetorado sobre o Iraque tem um custo desastroso para o sistema internacional e para os Estados Unidos. A coesão das potências que têm direito a veto no Conselho de Segurança foi reduzida a poeira e a credibilidade dos mecanismos de segurança coletiva da ONU está em frangalhos. A Aliança Atlântica enfrenta crise inédita, pois França e Alemanha seguem um curso de ruptura aberta com a política externa da Casa Branca. Além disso, a guerra no Iraque esfria as relações americanas com a Rússia, desestabiliza o delicado equilíbrio interno da Turquia e enfrenta a oposição ativa das massas árabes e muçulmanas, do Egito à Indonésia.
Por que Bush aceita pagar esse preço, se o Iraque representa um risco militar insignificante para a segurança americana? A resposta convencional -a sede americana de petróleo- é verdadeira, mas carece de força explicativa. Afinal, o petróleo já estava lá durante a Guerra do Golfo, em 1991, quando Bush sênior preferiu conservar Saddam no poder, e em 1998, quando Clinton assistiu impassível à expulsão iraquiana dos inspetores da ONU. O que precisa ser explicado é a conexão entre a "guerra ao terror" e a operação de derrubada de Saddam. No centro dessa conexão está a crise política da Arábia Saudita.
A Arábia Saudita detém quase um quarto das reservas petrolíferas mundiais e desempenha papel decisivo na política mundial do petróleo. Seu interesse consiste em estabilizar os preços, evitando quedas abruptas ou altas exageradas, que estimulariam o desenvolvimento de fontes energéticas alternativas. Sua arma é a enorme capacidade ociosa de extração: atualmente o país coloca no mercado cerca de 7,5 milhões de barris por dia, mas pode produzir perto de 10,5 milhões.
Manipulando essa capacidade ociosa, a Arábia Saudita, tradicional aliada dos Estados Unidos, assegura um fluxo constante de petróleo a preços razoáveis no mercado internacional. Mas a crise da monarquia saudita ameaça todo esse mecanismo de regulação do mercado.


O que precisa ser explicado é a conexão entre a "guerra ao terror" e a operação de derrubada de Saddam


O Estado saudita foi fundado em 1902, por Abdul Aziz ibn Saud, sobre o alicerce da aliança entre o clã guerreiro e a seita islâmica puritana dos Wahabitas. A Casa de Saud governa com poderes absolutos, mas deve respeito à lei corânica (a "sharia") e assegura aos Wahabitas o controle sobre a religião, a educação e as comunicações.
Nos anos 60, o Egito de Nasser reprimiu duramente os fundamentalistas da Irmandade Muçulmana. Seus líderes exilaram-se na Arábia Saudita, politizando o fundamentalismo Wahabita. A monarquia saudita, sentindo-se ameaçada pelo pan-arabismo modernizante egípcio, pretendia utilizar o apelo do islã para projetar a sua influência no mundo árabe e muçulmano.
O islã político não parou de crescer. Na Palestina ocupada surgiu o Hamas, inicialmente sob o beneplácito de Israel, para rivalizar com a OLP. No Afeganistão, o dinheiro saudita e as armas americanas patrocinaram as guerrilhas fundamentalistas que combatiam a ocupação soviética. Milhares de árabes participaram da "guerra santa" (a "jihad") nas montanhas afegãs. Foi lá que o saudita Osama bin Laden, com o apoio da CIA, fez seu batismo de fogo.
O gênio, liberto da garrafa, fugiu ao controle de seus amos originais. A ruptura aconteceu na Guerra do Golfo, quando a monarquia saudita recusou o pedido de Osama bin Laden de combater Saddam Hussein e forneceu bases militares permanentes para os Estados Unidos. Então, bin Laden acusou a Casa de Saud de unir-se aos infiéis e conspurcar a Terra Santa, transferiu-se para o Afeganistão, organizou a Al Qaeda e conclamou a "jihad" contra os Estados Unidos. Um acordo entre a Casa de Saud e os Wahabitas definiu os limites da ação dos "guerreiros da fé": a monarquia faria vistas grossas para o financiamento da Al Qaeda, mas o grupo respeitaria o regime saudita.
Os atentados de 11 de setembro minaram as bases desse acordo. Washington passou a exigir da monarquia saudita o corte dos fluxos financeiros que irrigam os grupos fundamentalistas. A exigência americana só poderia ser atendida através da repressão contra os Wahabitas e da completa subordinação da família real, que compreende cerca de 25 mil integrantes, entre os quais 5.000 príncipes. O nome disso é guerra civil.
Atrás da guerra contra o Iraque está o terremoto que abala os alicerces do Estado saudita. O pesadelo que atormenta Washington consiste na manutenção do poder de Saddam Hussein em Bagdá enquanto se processa a implosão da monarquia saudita. Nesse cenário, as fontes de petróleo do Golfo Pérsico ficariam reféns da turbulência política na Arábia Saudita, empurrando os mercados financeiros globais e a economia americana para o abismo.
O estabelecimento de um protetorado americano no Iraque e o controle das fontes de petróleo do país não são os objetivos finais da operação geopolítica deflagrada por Bush há um ano, no discurso do "eixo do mal". São, isso sim, a plataforma indispensável para uma reinvenção do Estado saudita, com a supressão da influência política dos Wahabitas e o alinhamento completo da monarquia à política de Washington.

Demétrio Magnoli, 44, doutor em geografia humana pela USP, é editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional".


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