São Paulo, sábado, 12 de março de 2011

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deve ser criada uma zona de exclusão aérea na Líbia?

NÃO

Entre valores e interesses

SALEM H. NASSER

O mundo árabe vive um despertar há muito esperado e portador de transformações radicais. Na nova realidade, não haverá lugar para governantes que enxergam seus países como propriedade privada e seus povos como dóceis rebanhos. E não haverá lugar para Gaddafi.
Mas esse novo mundo virá à luz por um processo doloroso e talvez longo. As dificuldades já se podem ver na gestação de uma nova sociedade e de uma nova política que ensaiam a Tunísia e o Egito, e aparecem mais dramaticamente na violência em que se desenrola a disputa pelo futuro da Líbia.
Essa violência parece ser inevitável, porque os grupos de oposição acreditam que de fato a era de Gaddafi chegou ao fim e que não há possibilidade de retorno ao "status quo" anterior; e, sobretudo, porque Gaddafi -por uma disposição de seu caráter, problemático, e por sua leitura das circunstâncias- percebe que não lhe restam muitas alternativas para sobreviver, senão apostar na manutenção do controle sobre o terreno, ou partes dele.
O conflito armado vem se apresentando como uma alternância de avanços e recuos em que não está claro para onde pende a balança de forças. A maior vantagem do regime parece ser a capacidade aérea que lhe permite bombardear posições dos oposicionistas.
É a percepção dessa vantagem que justificaria, segundo alguns, o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea. Tal zona implicaria, em princípio, a decisão política de trabalhar para a queda de Gaddafi. Posicionar-se contra tal medida, especialmente se realizada por determinados canais, não deve ser lido, no entanto, como a defesa da manutenção do regime.
Primeiramente, deve haver uma recusa, por princípio, de qualquer intervenção militar -de que a zona não é senão o primeiro passo- que se faça unilateralmente, pelos Estados Unidos ou pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), sem ser aprovada pelo CS (Conselho de Segurança da ONU). O CS está longe de ser perfeito.
Dominado por considerações políticas, muitas vezes emite decisões equivocadas, ilegítimas mesmo, e muitas outras se cala e se mostra fraco. Mas, pelo direito internacional, o recurso ao CS é obrigatório nessas circunstâncias, e o processo político que ali se desenrolaria é a melhor chance de que uma tal medida seja objeto pelo menos de algum contraditório.
Em seguida, é preciso honestamente perquirir sobre as motivações de uma tal medida - seja unilateral, seja aprovada pelo CS. Um espírito crítico deve desconfiar da pureza de intenções de quem ontem costurava laços de intimidade com Gaddafi e hoje se dispõe a arriscar o conflito armado para derrubá-lo. Não se trata, portanto, na essência, de uma tomada de decisão orientada por valores.
Há, ao contrário, uma leitura que enxerga o fim, inevitável, de um estado de coisas e um cálculo sobre o que se deve fazer para influenciar a nova condição, o novo equilíbrio de forças e para proteger os próprios interesses. Assim, é uma ilusão a ideia de que EUA e União Europeia, por meio da Otan ou não, atuariam só para assegurar a queda de Gaddafi e para não ter mais o que dizer sobre o futuro da Líbia a partir daí. Quando os povos árabes se insurgem contra a opressão, recusam-se a ter seus destinos ditados, quer por regimes arcaicos, quer por potências estrangeiras.
A zona, que num primeiro momento se quer defender para preservar a vida e sustentar o bem, costuma anunciar um envolvimento militar maior, que termina por amarrar de novo o país a interesses que não são os seus.

SALEM H. NASSER, 43, é coordenador do Centro de Direito Global da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Direito GV).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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