São Paulo, quarta-feira, 12 de abril de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A corrupção e a cena eleitoral

BORIS FAUSTO

Até que ponto o tema da corrupção terá incidência significativa entre as questões debatidas no curso da campanha eleitoral? A pergunta não é sem propósito, pois, afinal de contas, depois de tantos escândalos e tanto deboche de que são responsáveis o governo e seu partido, o presidente Lula mantém índices elevados de preferência nas pesquisas de opinião.


Lula é capaz de se apresentar como herói salvador e companheiro, embora não seja nem uma coisa nem outra


Ao discutir o assunto, cabe lembrar, em especial, dos setores carentes da população, pois é entre eles -e, regionalmente, no Nordeste- que se situam as nítidas preferências pela candidatura Lula. Há, portanto, boas razões para se dedicar a esses setores, mas sem ignorar outros, entre eles, alguns estratos de classe alta confortados pelo quadro econômico relativamente favorável, dando de ombros para as acusações de natureza ética. Só podemos nos dar ao luxo de ignorar os áulicos, os porta-vozes de um partido que afirmou um dia ser o da ética na política, hoje entregues à tarefa deprimente de desprezar a ética com floreios verbais e desculpas esfarrapadas que são um insulto à inteligência da população brasileira.
Entrar no terreno do apoio de setores das classes populares a Lula equivale a entrar numa zona de risco, pois se torna muito fácil cortar a discussão lançando a pecha de elitista em quem procura entender as bases dessa atração.
Não é preciso ser nenhum especialista em ciências humanas para constatar que as elites políticas e econômicas brasileiras sempre tenderam a ignorar a importância da incorporação da grande massa da população à cidadania. O fato de que a capacidade de pressionar dos setores dominados tenha sido historicamente frágil no Brasil não isenta as elites dessa responsabilidade.
As carências de uma parte ponderável da população, materiais e afetivas, teve e têm penosas conseqüências. Para quem vive de uma renda ínfima, o atendimento assistencial sob várias formas, a elevação do salário mínimo, as benesses de um ano eleitoral são fatores essenciais de sobrevivência.
Além disso, é compreensível a atração por uma figura como o presidente Lula, capaz de se apresentar, a um só tempo, como herói salvador e companheiro, embora não seja nem uma coisa nem outra, porque heróis salvadores são personagens de ficção e ex-companheiro não é sinônimo de companheiro.
Quem pode, pois, culpar os chamados setores de baixo por parecerem blindados aos escândalos políticos, por maiores que sejam? Quem pode acusá-los de "burrice" quando, não obstante as condições adversas, muitos fazem prodígios para se equilibrar na corda bamba?
Não vejo nesse comportamento uma ausência total de informação. Admita-se que, para pessoas de pouca ou nenhuma instrução formal, as notícias -que têm como fonte básica ou única a televisão- possam ser mal interpretadas. Mas não há razões para acreditar que a gente mais pobre seja surda a informações políticas. Nem creio que a blindagem que garante o prestígio presidencial seja invulnerável. Sem dúvida, porém, ela é bastante sólida, e para isso concorreu a oposição, que tratou de poupar o presidente da responsabilidade pelos escândalos ou por sua omissão diante deles.
A força da blindagem pode ser medida pelo resultado das pesquisas do Datafolha após a tentativa do governo de converter em réu o caseiro Francenildo Costa -o homem que desmentiu frontalmente o "grande irmão", o ex-ministro Antonio Palocci. O percentual de intenção de voto no presidente Lula ficou praticamente inalterado, tudo indicando que a identificação com um modesto cidadão, vítima da prepotência governamental, não chegou, ao menos por hora, a se concretizar.
Entretanto, há nessa pesquisa um dado muito inquietante. Enquanto a intenção de voto no presidente Lula permanece estável, 83% dos eleitores afirmam que o presidente tem muita ou alguma responsabilidade pela corrupção. Há aí um sinal de que as ações ilícitas na vida pública são cada vez mais aceitas resignadamente pela população, como o ar poluído que respiramos nas grandes cidades.
Por isso mesmo, como acredito na relevância das questões de princípios, creio que o tema da ética na política deve ser um dos focos principais da campanha eleitoral. É certo que o tema corre o sério risco de converter-se em bate-boca estéril, em lavagem de roupa suja, como tem acontecido em muitos países, não só no Brasil. Mas creio ser necessário insistir nele. É preciso demonstrar que não se trata, no caso, de "moralismo", mas de uma questão de dignidade, e, em sentido menos abstrato, de desvio ilegal de recursos públicos que deveriam ser empregados em muitas iniciativas, inclusive de natureza social.
A essa altura, seria problemático arriscar qual o rendimento que teria, em termos eleitorais, a insistência nessas questões. Mas creio que vale a pena tomar esse caminho, porque se trata de afirmar, com clareza, valores e princípios que transcendem a eleição de outubro e se projetam para o futuro.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "História Concisa do Brasil".


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