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CLEUSA TURRA
Luto e Alzheimer
PIERINA ESTÁ de luto. Há um
mês, perdeu sua irmã Maristela, 80 e poucos anos, vítima
do mal de Alzheimer, doença neurológica que afeta a memória, a razão, a comunicação e a capacidade
de julgamento.
Dividiram o mesmo quarto por
toda a vida. Conheci as duas procurando uma casa de vila à venda. Suponho que Maristela não chegou a
me notar -assim como já nem
mais reconhecia a própria irmã.
Seus últimos seis meses, passava
deitada na cama, bem penteada,
cabelos brancos. Com um corpo de
menina, não chegava a pesar 40
quilos. Segundo relatos de Pierina
e da senhora que a atendia, de um
ano para cá já não descia mais para
a pequena sala do sobrado, e sua
poltrona acabou aposentada.
A alimentação era preparada no
liquidificador. O banho se fazia na
cama. A troca das fraldas geriátricas acontecia pontualmente, com
uma freqüência de recém-nascido.
Nas poucas visitas que fiz à minha vizinha, nossa conversa era interrompida por grunhidos e gritos
vindos do andar de cima. Pierina
buscava me tranqüilizar, que eu
não me impressionasse. "É da
doença", dizia ela em voz baixa.
Durante dez anos, desde que o
mal de Alzheimer foi diagnosticado, freqüentemente o sono de Pierina era interrompido pelas solicitações de Maristela. Bordadeira
desde os 11 anos, filha de mãe severa, deixou dois pretendentes. Tinha fama de fazê-los sofrer. Passou
a cozinhar só após a irmã adoecer.
Esse drama familiar, com uma
irmã em idade avançada cuidando
da mais nova, doente, exposto a
quem estivesse interessado em
comprar a casa -a artrose impede
que Pierina se mova bem nas escadas, daí a busca por um apartamento-, me inquietava. Não seria melhor, para as duas, levar Maristela a
um asilo? A irmã rechaçava, categórica: ela não seria tão bem-cuidada. Tinha visitado com parentes
um lugar especializado no atendimento a pacientes com Alzheimer.
No Brasil, são poucos os estudos
sobre a doença. Segundo Jerson
Laks, coordenador do Departamento de Psiquiatria Geriátrica da
Associação Brasileira de Psiquiatria, os estudos na população indicam uma prevalência de 3,5% a 7%
em pessoas acima de 65 anos. Nada
desprezível. Estamos falando de
cerca de um milhão e meio de
doentes hoje.
Pierina agora está aprendendo a
dormir só. Chora muito. Todos os
dias. Conseguiu sorrir, no nosso último encontro, ao lembrar das brigas com Alzira, a senhora que lhe
faz companhia. Mas como foi mesmo que essa senhora veio parar
aqui? "Foi o entregador de gás
quem me indicou. Ela me ajudou a
cuidar da minha irmã."
Finalmente um homem -o entregador de gás- entrava na história, para apagar a impressão de que
tratar da dor na velhice é uma tarefa exclusivamente feminina.
CLEUSA TURRA é diretora de revistas da Folha.
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