São Paulo, quinta-feira, 12 de abril de 2007

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CLEUSA TURRA

Luto e Alzheimer

PIERINA ESTÁ de luto. Há um mês, perdeu sua irmã Maristela, 80 e poucos anos, vítima do mal de Alzheimer, doença neurológica que afeta a memória, a razão, a comunicação e a capacidade de julgamento.
Dividiram o mesmo quarto por toda a vida. Conheci as duas procurando uma casa de vila à venda. Suponho que Maristela não chegou a me notar -assim como já nem mais reconhecia a própria irmã.
Seus últimos seis meses, passava deitada na cama, bem penteada, cabelos brancos. Com um corpo de menina, não chegava a pesar 40 quilos. Segundo relatos de Pierina e da senhora que a atendia, de um ano para cá já não descia mais para a pequena sala do sobrado, e sua poltrona acabou aposentada.
A alimentação era preparada no liquidificador. O banho se fazia na cama. A troca das fraldas geriátricas acontecia pontualmente, com uma freqüência de recém-nascido.
Nas poucas visitas que fiz à minha vizinha, nossa conversa era interrompida por grunhidos e gritos vindos do andar de cima. Pierina buscava me tranqüilizar, que eu não me impressionasse. "É da doença", dizia ela em voz baixa.
Durante dez anos, desde que o mal de Alzheimer foi diagnosticado, freqüentemente o sono de Pierina era interrompido pelas solicitações de Maristela. Bordadeira desde os 11 anos, filha de mãe severa, deixou dois pretendentes. Tinha fama de fazê-los sofrer. Passou a cozinhar só após a irmã adoecer.
Esse drama familiar, com uma irmã em idade avançada cuidando da mais nova, doente, exposto a quem estivesse interessado em comprar a casa -a artrose impede que Pierina se mova bem nas escadas, daí a busca por um apartamento-, me inquietava. Não seria melhor, para as duas, levar Maristela a um asilo? A irmã rechaçava, categórica: ela não seria tão bem-cuidada. Tinha visitado com parentes um lugar especializado no atendimento a pacientes com Alzheimer.
No Brasil, são poucos os estudos sobre a doença. Segundo Jerson Laks, coordenador do Departamento de Psiquiatria Geriátrica da Associação Brasileira de Psiquiatria, os estudos na população indicam uma prevalência de 3,5% a 7% em pessoas acima de 65 anos. Nada desprezível. Estamos falando de cerca de um milhão e meio de doentes hoje.
Pierina agora está aprendendo a dormir só. Chora muito. Todos os dias. Conseguiu sorrir, no nosso último encontro, ao lembrar das brigas com Alzira, a senhora que lhe faz companhia. Mas como foi mesmo que essa senhora veio parar aqui? "Foi o entregador de gás quem me indicou. Ela me ajudou a cuidar da minha irmã."
Finalmente um homem -o entregador de gás- entrava na história, para apagar a impressão de que tratar da dor na velhice é uma tarefa exclusivamente feminina.


CLEUSA TURRA é diretora de revistas da Folha.

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