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DEMÉTRIO MAGNOLI
Vontade de potência
No sistema internacional, comércio e estratégia correm em
trilhos diferentes. Estratégia é sobre
segurança, poder e valores. Comércio
é sobre desenvolvimento. Mesmo no
caso de blocos como a União Européia
ou o Mercosul, as duas esferas da cooperação regional subordinam-se a regras e mecanismos de decisão distintos. A Cúpula América do Sul-Países
Árabes desafiou esse princípio, com
prejuízos tanto para o comércio quanto para a estratégia. Ela é uma síntese
dos dilemas de uma política externa
que se tornou refém das miragens desenhadas pelo seu próprio discurso.
O formato de uma cúpula de chefes
de Estado sugeria a primazia da estratégia. As prioridades comerciais proclamadas pelo Itamaraty redundaram
na ausência dos principais líderes árabes e de alguns líderes sul-americanos.
Celso Amorim minimizou o esvaziamento da reunião, enfatizando seus
objetivos econômicos. Lula abriu a
conferência destacando sua natureza
política. A declaração final veste os
conceitos de terrorismo, soberania
nacional e resistência à ocupação com
a linguagem escorregadia da ambigüidade. O Brasil tentou sem sucesso inserir uma menção à democracia, atendendo à solicitação de Condoleezza
Rice. Os governos árabes, muitos dos
quais alinhados a Washington, emplacaram um elogio à "diversidade
cultural", que é expressão cifrada de
legitimação de ditaduras. O epitáfio da
declaração surgiu antes mesmo da redação final, na frase reveladora de
Amorim: "Cada um lerá da maneira
que entenda".
O divórcio entre a palavra e o fato é
sempre a melhor evidência da renúncia ao realismo. Lula voltou a delirar
sobre a sua "nova geografia econômica do planeta". Os argentinos denunciaram o virtual colapso do Mercosul.
Hugo Chávez citou Amorim para
anunciar uma "nova geopolítica" baseada na cooperação sul-sul. Os dois
principais líderes árabes presentes, o
do Iraque e o da Palestina, representam países sob ocupação estrangeira.
O presidente iraquiano Talal Jalabani,
cuja segurança pessoal foi supervisionada por agentes do serviço secreto
americano, descreveu a invasão militar de seu país como "uma guerra do
povo contra a ditadura". Lula ofereceu
ao palestino Mahmoud Abbas, também conhecido por Abu Mazen, uma
aula sobre as virtudes da paciência na
política. Um indisfarçável tom farsesco contaminou os discursos.
Lula e Amorim parecem impressionados pelas suas próprias proclamações extravagantes. A operação militar e policial de fechamento, cerco e
captura de Brasília, que mimetizou as
reuniões do G-7, não encontra justificativas na lógica da segurança. Mas ela
traduz o ânimo de uma política externa embriagada pela vontade de potência: o Brasil emerge da injusta obscuridade, afirma a sua condição de "líder
natural" da América do Sul, apresenta-se ao mundo como protagonista da
restauração do Terceiro Mundo e candidata-se a um lugar cativo entre as
grandes potências do planeta.
O ácido das expectativas inflacionadas corrói o sentido de proporção, e o
rufar de tambores da patriotada encobre o som das críticas. Amorim, auxiliares e áulicos protegem-se atrás da
paliçada de suas certezas, imaginam
que os críticos são inimigos e fingem
que a realidade é uma invenção da mídia. Infelizmente, não é.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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