São Paulo, sexta-feira, 12 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SARNEY

Tá chovendo na Bahia

Minha primeira lembrança concreta de guerra é de 1943, em São Luís, que era uma das bases-pontes que os Estados Unidos montaram no norte do Brasil para possibilitar, a partir de Natal, a travessia do Atlântico para consolidar o front da África num tempo em que os aviões não tinham grande autonomia. Era um ginasiano (que saudades!) e morava num pensionato, onde almoçava sempre o padre Salles, reitor do seminário, que rezava missa aos domingos para os soldados americanos católicos na base aérea. Eu o acompanhava para ajudar a celebração religiosa -como coroinha.
A guerra era algo de mistério e de medo, que me alarmava, e o Brasil declarara guerra à Alemanha. Verdadeiramente, não avaliava o que fosse, mas fiquei tão envolvido que ingressei no então criado Serviço de Instrução Pré-militar, organizado para meninos. Achava que, em breve, seria um soldado aliado. Escrevi a meus pais, que moravam no interior do Estado, cartas preocupadas, contando os boatos que circulavam na cidade sobre submarinos alemães nas costas, sobre ameaças de bombardeio, sobre espiões alemães e italianos agindo em São Luís e sobre o perigo dos "quinta-colunas". Quando a guerra terminou, festejei com grande alegria, escrevi poemas sobre "a aurora de um novo dia". (Que frustrações!).
Meu pai contou-me que em Pinheiro eles estavam "ouvindo a guerra". Chegara um rádio importado pelo farmacêutico José Alvim, uma dessas figuras inesquecíveis nas pequenas cidades. Era a grande novidade da terra e ele o colocava na sua sala, aberta a uma multidão curiosa de amigos. Aquela geringonça falava rouca, quase inaudível, e com interferências estáticas que provocavam ruídos intensos. José Alvim os justificava: "Esse barulho violento é a guerra". E ficavam em silêncio ouvindo a guerra. Quando a interferência de estática era intensa, provocando prolongado ruído, José Alvim explicava: "É tiro de alemão".
A guerra acabou, e ele encontrou outra explicação para a má transmissão do seu rádio e a dificuldade de sintonizar as estações: "Agora não tem mais guerra, mas está chovendo na Bahia, não passa nada". Era o resultado da paz.
Agora, digo a minha mãe, já com seus 90 julhos, que tenho de ir a Portugal para a inauguração da exposição dos meus setenta anos, feita pela Academia Brasileira de Letras na Fundação Mário Soares, e ela me adverte: "Meu filho, tenha cuidado, a guerra já chegou na Europa, não vá se meter". "Quem lhe disse?", foi minha pergunta. "O vigia, seu Zé Brandão". Respondo-lhe, com carinho: "A senhora está com um ótimo consultor militar, mas se esqueceu da geografia, e eu não tenho mais idade para ser soldado". "São os terroristas que estão em todo lugar", respondeu-me ela.
Sua observação serve para avaliar a extensão do medo que se espalhou no mundo, receoso do inimigo invisível, feito de fanatismo e de ódio.
Minha geração acreditou que, depois da Segunda Guerra Mundial, íamos ingressar num tempo de paz, num mundo mais justo, melhor e humano. E agora? O mundo é outro. Não podemos mais imaginar a guerra nos ruídos de rádios péssimos, mas podemos ver o clarão verdadeiro dos ataques nas telas de TV digital. Seria bem melhor se estivesse "chovendo na Bahia".
Nenhum conflito é bom e nenhuma paz é ruim. Difícil é convencer os homens.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



Texto Anterior: Rio de Janeiro - Marcelo Beraba: Censura e desinformação
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.