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JOSÉ SARNEY
Tá chovendo na Bahia
Minha primeira lembrança
concreta de guerra é de 1943, em
São Luís, que era uma das bases-pontes que os Estados Unidos montaram
no norte do Brasil para possibilitar, a
partir de Natal, a travessia do Atlântico para consolidar o front da África
num tempo em que os aviões não tinham grande autonomia. Era um ginasiano (que saudades!) e morava
num pensionato, onde almoçava sempre o padre Salles, reitor do seminário,
que rezava missa aos domingos para
os soldados americanos católicos na
base aérea. Eu o acompanhava para
ajudar a celebração religiosa -como
coroinha.
A guerra era algo de mistério e de
medo, que me alarmava, e o Brasil declarara guerra à Alemanha. Verdadeiramente, não avaliava o que fosse,
mas fiquei tão envolvido que ingressei
no então criado Serviço de Instrução
Pré-militar, organizado para meninos. Achava que, em breve, seria um
soldado aliado. Escrevi a meus pais,
que moravam no interior do Estado,
cartas preocupadas, contando os boatos que circulavam na cidade sobre
submarinos alemães nas costas, sobre
ameaças de bombardeio, sobre espiões alemães e italianos agindo em
São Luís e sobre o perigo dos "quinta-colunas". Quando a guerra terminou,
festejei com grande alegria, escrevi
poemas sobre "a aurora de um novo
dia". (Que frustrações!).
Meu pai contou-me que em Pinheiro eles estavam "ouvindo a guerra".
Chegara um rádio importado pelo
farmacêutico José Alvim, uma dessas
figuras inesquecíveis nas pequenas cidades. Era a grande novidade da terra
e ele o colocava na sua sala, aberta a
uma multidão curiosa de amigos.
Aquela geringonça falava rouca, quase inaudível, e com interferências estáticas que provocavam ruídos intensos. José Alvim os justificava: "Esse
barulho violento é a guerra". E ficavam em silêncio ouvindo a guerra.
Quando a interferência de estática era
intensa, provocando prolongado ruído, José Alvim explicava: "É tiro de
alemão".
A guerra acabou, e ele encontrou
outra explicação para a má transmissão do seu rádio e a dificuldade de sintonizar as estações: "Agora não tem
mais guerra, mas está chovendo na
Bahia, não passa nada". Era o resultado da paz.
Agora, digo a minha mãe, já com
seus 90 julhos, que tenho de ir a Portugal para a inauguração da exposição
dos meus setenta anos, feita pela Academia Brasileira de Letras na Fundação Mário Soares, e ela me adverte:
"Meu filho, tenha cuidado, a guerra já
chegou na Europa, não vá se meter".
"Quem lhe disse?", foi minha pergunta. "O vigia, seu Zé Brandão". Respondo-lhe, com carinho: "A senhora está
com um ótimo consultor militar, mas
se esqueceu da geografia, e eu não tenho mais idade para ser soldado".
"São os terroristas que estão em todo
lugar", respondeu-me ela.
Sua observação serve para avaliar a
extensão do medo que se espalhou no
mundo, receoso do inimigo invisível,
feito de fanatismo e de ódio.
Minha geração acreditou que, depois da Segunda Guerra Mundial, íamos ingressar num tempo de paz,
num mundo mais justo, melhor e humano. E agora? O mundo é outro.
Não podemos mais imaginar a guerra
nos ruídos de rádios péssimos, mas
podemos ver o clarão verdadeiro dos
ataques nas telas de TV digital. Seria
bem melhor se estivesse "chovendo
na Bahia".
Nenhum conflito é bom e nenhuma
paz é ruim. Difícil é convencer os homens.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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