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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Judiciário e o acesso de tosse

SAULO RAMOS


E se a ONU resolvesse inspecionar o Congresso Nacional por não gostar da qualidade de nossa legislação penal?

Ela se chama Asma Jahangir. É relatora da ONU encarregada de fazer um levantamento sobre as execuções sumárias de vidas humanas em vários países, menos Cuba. Veio ao Brasil. Prato cheio. Por todo lado ouviu relatos de mortes de inocentes ou de bandidos sem julgamentos, isto é, sumariamente executados. Anunciou sua primeira conclusão: a culpa é do Judiciário e dos juízes. E vai pedir uma inspeção das Nações Unidas na nossa Justiça, como se tivéssemos aqui armas de destruição em massa, ainda que para pizza.
Lula parece haver gostado e, ainda que discretamente, aplaudiu, espremendo os frutos daquela briguinha com o ministro Maurício Corrêa, presidente do STF. Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, homem de bem, meu querido amigo, pisou no tomate e disse que o Judiciário precisa de uma reforma radical. Precisa mesmo. Isso, porém, dito quando a doutora Asma quer invadir os brônquios da nossa soberania, significa pisar no tomateiro todo, dando a impressão de que concorda com a anomalia.
A reforma é nossa. Não pode ser entregue à ONU, porque, se juntar a dra. Asma com o "Kofi-Kofi" Annan, o assunto vai sofrer um acesso de dispnéia paroxística. Creio, no entanto, que Kofi Annan, homem de bom senso, conhecendo bem o Brasil, não concordará com a sugestão. Ele está acostumado com as bobagens de Bush e as tem repelido, como certamente fará com essa proposta de absurda corregedoria por um órgão internacional em um dos Poderes soberanos de um país democrático. E se a ONU resolvesse inspecionar o Congresso Nacional por não gostar da qualidade de nossa legislação penal? Ou inspecionar o governo Lula porque não gosta dos assassinatos da língua portuguesa?
Vamos ter de debater, sim, o controle externo do Judiciário, mas ninguém, das várias correntes que se formaram em torno da matéria, admite que o controle seja tão externo como o proposto pela dra. Asma sob o sorriso maroto de Lula, que anda doidinho para mexer naquilo que definiu como caixa-preta e, agora, quer permitir que seja fuçada por estrangeiros.
Não explicaram para a dra. Asma, cujo trabalho é de suma importância, que, no Brasil, o Judiciário nada tem que ver com as execuções sumárias, inclusive das testemunhas ouvidas por ela. Nosso sistema jurídico não permite que o juiz tome providências de ofício, isto é, por iniciativa própria. A lei exige que o magistrado passe a agir somente quando provocado (atenção: "provocado" tem sentido técnico, isto é, quando alguém apresenta ao juiz um requerimento, uma ação, uma queixa, ou pede um decreto de prisão. Diferente de provocado por um desaforo ou xingamento).
As execuções sumárias, no Brasil, têm sido praticadas pela polícia, instituição que é submetida ao comando dos governadores e do presidente da República, isto é, do Poder Executivo. Na Bahia, uma das testemunhas da doutora acabou de ser executada sumariamente. Foi um juiz? Não, foi PM, que significa, naquelas bandas, "periculum mortis". Sabemos que a polícia tem de tudo -os milagrosamente honestos, que ganham pouco e continuam sendo honestos; e há, lamentavelmente, bandidos, que se outorgam licença para matar.
O juiz de direito nada pode fazer contra isso, a menos que o Ministério Público denuncie, ou que a própria polícia (?) inicie o inquérito, quando, para as "devidas" providências, a lei exige que sejam requeridas ou pelo promotor público ou pela autoridade policial.
A dra. Asma está confundindo tudo. Leu na nossa Constituição que existe a polícia judiciária e ninguém lhe explicou que, embora constitucional, é tudo mentirinha. Quem manda na polícia é o Executivo. A história de "judiciária" é somente para os inquéritos que vão instruir a ação penal ou cumprir diligências ordenadas pelo magistrado, sempre a requerimento de uma das partes.
A doutora deixou-se influenciar pela estrutura judiciária de outros países, em que os magistrados podem agir por sua própria conta. Na França há a magistratura sentada e a magistratura em pé. Esta equivale ao nosso Ministério Público, mas tanto uma como outra podem mandar na polícia porque, pela Constituição francesa, "estão sob a proteção do presidente da República", o que as livra do primeiro-ministro no sistema parlamentarista. Ou, na Espanha, onde aquele célebre juiz de Madri processa todo mundo e há poucos dias expediu uma mandado de prisão contra Osama bin Laden.
Creio que seria melhor para o presidente da República e seu ministro da Justiça pagarem as despesas da Polícia Federal, em estado falimentar, sem verba para telefone, luz, água, funcionários -e, portanto, sem condições de combater o crime, inclusive o de execuções sumárias de vítimas e testemunhas.
É melhor cumprirem com seus deveres mais elementares para com a segurança pública do país do que estimular inspeção estrangeira nas nossas instituições, que têm suas falhas, mas são problemas nossos, dos brasileiros, posto que dizem respeito à soberania nacional, e dela não podemos abrir mão sob nenhum pretexto.


José Saulo Pereira Ramos, 74, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


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